terça-feira, 13 de setembro de 2016

Resenha Crítica do livro "O Alquimista"

por: Gustavo Aguiar


'O Alquimista' de Paulo Coelho é um daqueles livros de ficção que se destacam pela capacidade de transmitir verdades complicadas de uma maneira absolutamente simples, direta e sem aquela atmosfera misteriosófica típica de best sellers sensacionalistas que têm as tradições esotéricas como pano de fundo. 

Em outras palavras: Paulo Coelho não escreve para eruditos ou pessoas interessadas em redescobrir a pólvora. Talvez esse seja o grande motivo por trás dos ataques sistemáticos que recebe de críticos literários que ganham a vida encontrando defeitos onde eles, muitas vezes, não existem.      

É surpreendente o modo como o autor consegue compor o enredo a partir de uma condensação – não necessariamente simplificada, diga-se de passagem - do simbolismo alquímico-hermético, presente desde o início na jornada do pastor Santiago em direção ao descobrimento de um suposto tesouro escondido nas Pirâmides do Egito.
   
Cada personagem que cruza o caminho do protagonista se comunica com ele por meio de uma linguagem de sinais (A Língua do Mundo), e o papel de Santiago se limita a escolher segui-los ou ignorá-los, sabendo que, no segundo caso, ele não estará mais distante do tesouro prometido, porque tudo o que vive tem duas faces, e elas não são de modo algum irreversíveis.

Há circunstâncias em que, por um lado, os sinais se desvelam como atalhos, mas, por outro, escolher não segui-los pode redundar em ganhos colaterais que recolocarão o intérprete no encalço, desta vez mais preparado e menos cético em relação ao surgimento de futuras oportunidades.

Mas o graal da obra-prima de Coelho reside na habilidade em mostrar que, ao contrário do que muitos pensam, a Arte Régia não é propriedade exclusiva de uns poucos gatos pingados agraciados com o beneficio da instrução, uma vez que existem ‘n’ maneiras de se viver a sua Lenda Pessoal que não através de livros técnicos e uma sabedoria restrita a membros de confrarias secretas; afinal, ‘assim como todas as coisas vieram do Um, assim todas as coisas são únicas, por adaptação’, conforme uma das mais proeminentes passagens reveladoras da Anima Mundi gravada na Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegistus. Esse é, aliás, o papel do Inglês: mostrar a Santiago o fracasso inevitável da erudição vazia e da sabedoria livresca.  

Óbvio que se você pega 'O Alquimista' para ler já tendo adquirido alguma familiaridade com o estudo teórico da alquimia propriamente dita, os símbolos espalhados pela obra e a importância de cada personagem na arquitetura da história tornar-se-ão mais facilmente identificáveis e a trama soará menos como um livro de autoajuda sentimentalóide e mais como um incentivo pessoal.

De qualquer sorte,  uma conclusão é inevitável: assim como a Pedra Filosofal, capaz, em tese, de transformar metais vulgares em ouro puro, o ‘tesouro’ escondido nas Pirâmides do Egito não é um composto físico, mas uma riqueza inimaginavelmente mais valiosa e duradoura: a chave para a boa vida na Terra, propósito e finalidade máxima da construção da Grande Obra.  

domingo, 24 de julho de 2016

Os modos de ser tradicionais enquanto estar-lançado em meio a co-possibilidades existenciais: uma breve reflexão antropológica sobre o Dasein

por: Gustavo Aguiar


“A tradição fala a cada homem a linguagem que ele pode compreender, com a condição de que ele de fato a queira escutar” – Frithjof Schuon

Há motivos suficientes para que consideremos Martin Heidegger como o filósofo mais importante do século XX, assim como Nietzsche o fora no século XIX. A influência exercida pelo pensamento nietzscheano nas elucubrações do mestre da floresta negra patenteia-se em diversas passagens e epígrafes presentes em sua obra prima Sein und Zeit (Ser e Tempo), mas com um enfoque inteiramente inovador em que a famigerada morte de Deus já não se coloca como objeto de questionamento prévio, e sim como um dado da realidade ou uma condição necessária para se estabelecer o lugar do homem no mundo a partir das múltiplas possibilidades que este experimenta no curso da sua trajetória existencial, que, por sua vez, passa a se horizontalizar, por assim dizer, com o advento do giro hermenêutico filosófico. Contudo, é na antologia poética de Friedrich Hölderlin que Heidegger encontrará a fonte de suas maiores inspirações.    

Sucessor da cátedra de Edmund Husserl na universidade de Freiburg, Heidegger partilha do mesmo repúdio de Nietzsche em relação ao pensamento sistemático, de modo que não demonstra a menor preocupação em estruturar sua analítica ontológico-existencial em um sistema fechado como, por exemplo, Kant e Descartes, transmitindo a impressão inicial de que as ideias se encontram suspensas no ar, como peças flutuantes de um complicadíssimo quebra-cabeça. Entretanto, essa impressão se dissipa tão logo aprendemos a “decifrar” a ontologia heideggeriana em seu epicentro gravitacional, qual seja: o ser-aí-no-mundo (Das in-der-Welt-Sein ou, simplesmente, Dasein), que, para Heiddeger, é o único ente capaz de questionar o ser, uma espécie de ente privilegiado que “[...] possui uma compreensão do ser. Ele existe imediatamente em um mundo. Ou seja, o Dasein é o homem na medida em que existe na experiência cotidiana, junto com os demais entes com seus afazeres e preocupações”. [1] É inclusive o fato de o Dasein se valer de uma linguagem própria, diferentemente dos animais, das plantas e dos rochedos que o singulariza enquanto ente. A morada do Dasein é a linguagem que vem ao encontro dentro do mundo, tendo em vista que quem fala, segundo Heidegger não é a expressão humana, mas a linguagem ao desvelar o velado e desencobrir o encoberto lá onde mundo e coisa se di-ferenciam no rasgo da sua convocação (HEIDEGGER: 2003, p. 23)

Antes de avançarmos na nossa investigação, impende salientar que um dos maiores méritos de Heidegger foi ter reatado o laço que ligava o ser dos entes intramundanos ao seu significado embrionário da presença grega. O próprio conceito de verdade é repensado para abarcar a “luta” travada no interior da dupla concepção de verdade como desencobrimento e correção, disputa que encontra sua culminação máxima na alegoria da Caverna de Platão e sem a qual a totalidade do ser do sendo não pode ser autenticamente compreendida em seu poder-ser mais próprio. Não mais localizada fora do homem como algo extrínseco às suas propriedades constitutivas, a verdade é deslocada para dentro dele, e aquilo que vem de encontro dentro do mundo não é senão algo que nós, enquanto homens, já descobrimos na decisão antecipadora do ser da presença. “O ser – e não o ente – só se dá porque a verdade é. Ela só é na medida e enquanto a pre-sença é. Ser e verdade ‘são’, de modo igualmente originário”. (HEIDEGGER: 2005, p. 299)  

Com o termo Dasein (ser-aí-no-mundo ou estar-no-mundo), Heidegger quer designar o homem em seu caráter de acontecimento factual sempre atualizante, que está jogado aí no mundo sem saber de onde veio e para aonde vai, movido por um sentimento de angústia e estranhamento diante do ser-para-morte (cura). “O angustiar-se abre, de maneira originária e direta, o mundo como mundo”. (HEIDEGGER: 2005, p.251) Se, por um lado, é verdade que para Heidegger o Dasein nunca se realiza ou plenifica, conquanto seja a tradução de um projeto inacabado e inacabável em cuja temporalização está em jogo a essência do homem enquanto existência, por outro, é preciso ter em mente que o ser retira ou absorve a singularidade do sendo da intramundanidade do mundo, é dizer: o ser só pode ser própria e autenticamente dentro de um mundo, com toda a fatalidade que isso implica e acarreta. Em outras palavras: o ser é aquilo que já está antecipadamente compreendido na abertura de manifestação para a afluência do sendo em seu sentido mais próprio e originário. Daí a ideia central no pensamento heideggeriano de que todo ato de interpretação se volta, necessariamente, para algo que já está essencialmente compreendido de antanho. O Dasein tem que poder se religar originariamente a essa pré-compreensibilidade da essência das coisas, na medida em que “ligação originária diz uma ligação que deve anteceder, que nós não apreendemos a essência com base numa pesquisa maior possível de fatos, mas que só podemos determinar fatos por já termos compreendido a essência das coisas”. (HEIDEGGER: 2012, p. 170)

O horizonte de possibilidades na abertura do qual o ser da presença está lançado tem que poder se coadunar com a multiplicidade de modos de ser tradicionais assimilados na espacialidade do ser-no-mundo e com sua iniludível propriedade categorial de ser-junto-a(os outros) por intermédio da de-cisão antecipadora como manifestação da cura em sentido próprio. “Enquanto cura, a totalidade ontológica da pre-sença diz: preceder-a-si-mesma-em (um mundo) enquanto ser-junto-a (entes que vêm ao encontro dentro do mundo)”. (Heidegger: 2012, p.121)

Evidentemente, não queremos advogar a tese absurda de que Heidegger é um autor tradicionalista no mesmo sentido em que costumeiramente se atribui este epíteto a pensadores da estirpe de René Guénon e Julius Evola, mas tão-somente que o estar previamente compreendido como vetor de possibilidades existenciais pressupõe um re-enraizamento, um voltar a instalar-se no solo de uma tradição ontologicamente sedimentada e assentada num espaço que comporta uma miríade de possíveis manifestações dimanantes do mesmo nascedouro, de uma fonte comum de onde tudo flui e para cujas águas tudo está fadado a retornar, sem que isso resulte no congestionamento aporético dos modos de ser ou na estagnação da experiência cotidiana. Seria mais adequado falarmos, então, em uma co-possibilidade de manifestações do ser que vai ao e de encontro a si mesmo no intramundo dos entes pelo horizonte de cotidianidade mediana da presença, de modo que, por cotidianidade, Heidegger indica a “[...] a temporalidade que possibilita o ser da pré-sença” em sua inter-relação com os demais entes no dia-a-dia (HEIDEGGER: 2012, p. 175)

Tal entendimento pode ser mais claramente visualizado em um dos postulados fundamentais da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer - discípulo de Heidegger -, para quem “a consciência da história efeitual vai muito além de mera comparação, de mero igualar; o que ocorre é uma transformação da tradição em experiência, mantendo-se aberta”. (SALGADO: 2008, p. 56). Mas o que exatamente possibilita esse “manter-se aberto” no marco de uma analítica existencial que se pretenda ontologicamente válida? Qual é o fundamento de legitimidade da unidade originária da estrutura da cura enquanto ser-para-o-fim e como predisposição do Dasein de angustiar-se perante a morte? A resposta de Heidegger reside no âmago da temporalidade, que, aliás, não deve ser confundida com passado, presente e futuro, haja vista que estes conceitos pertencem a uma compreensão imprópria de tempo, um tempo já submetido ao processo de temporalização da temporalidade em sentido próprio e ainda mais originário.  

Em vez disso, fala-se de um esquema horizontal balizador da unidade “ek-stática” da temporalidade, composto, sequencialmente, por três momentos distintos, se bem que reciprocamente intercambiáveis, quais sejam: porvir, vigor de ter sido e atualidade. Esses três momentos ek-státicos da temporalidade constituem a “unidade de existência”, e, de conseguinte, a “totalidade da estrutura da cura”. Nos dizeres de Heidegger, “o característico do ‘tempo’ acessível à compreensão vulgar consiste, entre outras coisas, justamente no fato de que, no tempo, o caráter ekstático da temporalidade originária é nivelado a uma pura sequência de agoras, sem começo nem fim. De acordo com seu sentido existencial, esse nivelamento funda-se, porém, numa determinada temporalização possível, pela qual a temporalidade temporaliza impropriamente esse ‘tempo’. Se, portanto, o ‘tempo’ acessível à compreensibilidade da pre-sença se comprova como não originário, e, além disso, como oriundo da temporalidade própria, então justifica-se, segundo a sentença a potiori fit denominatio, a designação da temporalidade agora liberada como tempo originário”. (HEIDEGGER: 2012, p. 123)

É precisamente nesse horizonte ek-stático de temporalidade que a existência (quo) do estar-lançado coloca em jogo a essência (quid) do ser da presença que vigora desde o início por estar sempre presente. É assim que toda a reviravolta existencial protagonizada por Heidegger pode ser apreendida como mutabilidade contínua da essência das coisas, mutabilidade esta que vem necessariamente acompanhada de uma atualidade. Se antes ser e ente figuravam estrutural e até dimensionalmente apartados – o primeiro, como objeto de estudo da ontologia e o segundo, das ciências ônticas -, no diagnóstico heideggeriano elas estão em uma relação de imbricação mútua, ao ponto de testemunharmos uma fusão ôntico-ontológica, a gênese de um novo modo de filosofar e de problematizar as verdadeiras condições de possibilidade das ciências ônticas.  

Todavia, esses componentes da totalidade estrutural da unidade ek-stática da temporalidade em sentido próprio não estão dispostos em um encadeamento progressivo ou linear, razão pela qual não podem ser pensados em termos de “antes” e “depois”, mas tão-somente de “entre”, na medida em que o que antecede e sucede o fenômeno de estar-lançado é a imersão na mais profunda nebulosidade, e é exatamente neste ponto que o pensamento heideggeriano revela seu lado mais sombrio: morte e nascimento constituem as duas modalidades do fim, e o “estar lançado” só pode se dar “entre” esses dois momentos obscuros. Em verdade, porvir, vigor de ter sido e atualidade se encontram em uma relação de interpenetração dialógica ou de justaposição, de maneira que “temporalização não significa ‘sucessão’ de ekstases. O porvir não vem depois do vigor de ter sido e este não vem antes da atualidade. A temporalidade se temporaliza num porvir atualizante do vigor de ter sido”. (HEIDEGGER : 2012, p. 149) Disso decorre que, para Heidegger, o temor e a angústia enquanto modos da disposição fundamental do Dasein “ fundem-se primariamente no vigor de ter sido, na totalidade da cura”, mas sua temporalização própria se origina de ek-stases diferentes. A angústia brota do porvir, e o temor, da atualidade. Ambos se mesclam em um modo de ser do vigor de ter sido, qual seja, segundo Heidegger: o esquecimento. “A recordação só é possível com base no esquecimento, e não o contrário”. (HEIDEGGER, p. 136)

A temporalidade originária em cujo domínio o ser-para-a-morte se angustia libertando a presença da cotidianidade mediana característica do tempo impróprio é finita, na medida em que o Dasein, malgrado esteja lançado em múltiplas possibilidades e sujeito a toda sorte de mudanças, é um ente dotado de uma série de limitações. Seguindo a esteira desse raciocínio, Heidegger vai concluir que é precisamente o caráter de finitude do tempo próprio que nos permite pensar o tempo impróprio em sua infinitabilidade. Ora, quando a morte chega e cessamos de existir, o tempo continua vigendo para os demais entes. É somente na e a partir da vigência da presença no tempo que o estar-lançado passa a significar alguma coisa que é e está sendo, e é pelo fato de o Dasein ser o único ente privilegiado capaz de esquecer que ele pode questionar sua própria existência e, por meio do questionamento, rememorá-la. A resposta “mora” no questionamento. Por isso, questionar já é, em certa medida, responder.  

Apesar de entendermos a inadequação consistente na pretensão de conferir roupagens antropológicas à analítica heideggeriana, seria um desperdício incomensurável nos abstermos de aproveitar o legado do mestre da floresta negra na lida com a questão dos modos de ser tradicionais experimentados pelo Dasein. Antropologicamente, é forçoso reconhecer a existência de uma pluralidade de Daseins, de seres-no-mundo, a irem de encontro às múltiplas possibilidades que para eles se abre na compreensão através do tempo. Destarte, é intuitivo que, existindo uma variedade de Daseins – compreendidos em cada um deles predicações de raça, etnia, língua e nacionalidade -, há uma miríade de tradições a fornecer-lhes uma significação específica que se revelam na concretude da experiência cotidiana do ser da presença. Mas antes de relacionar a questão da tradição com o deixar ir e fazer ver o ser dos entes intramundanos, precisamos esclarecer em que sentido empregamos o vocábulo “tradição”, e aqui torna-se imprescindível buscar arrimo na concepção tradicionalista de René Guénon, para quem tradição deve ser etimologicamente compreendida como “o que se transmite”, seja por intermédio da oratória, seja pela escrita. [2] Nesse ponto, urge esclarecer que evocamos a autoridade de Guénon sem a mais mínima intenção de abordar a tese perenialista da unidade transcendente das religiões, tema que melhor se ajustaria a investigações acerca do caráter transcendente/não-transcendente do Dasein, o que foge completamente ao objetivo do presente estudo.
  
Portanto, é mister que em Heidegger cada tradição exista em mundos diferentes, sem que seus diferentes ritmos de desenvolvimento e aperfeiçoamento impliquem na superioridade de uma tradição sobre a outra, tendo em vista que o ser da presença está indo de encontro àquilo que lhe está sendo tradicionalmente comunicado dentro do mundo por meio da linguagem, e a circularidade que se dá entre linguagem-mundo-compreensão experimenta significados muito distintos, a depender da conjuntura em que se projetam existencialmente como Dasein. Por isso seria mais consentâneo aludirmos a uma co-possibilidade de perspectivas existenciais do que a meras possibilidades. No primeiro caso, estamos levando em consideração a pluralidade de modos de existir no seio de uma espacialidade e de uma historicidade (não-historiográfica) que se projetam temporalmente. No segundo, incorreríamos no erro de privilegiar uma concepção unívoca do horizonte do possível, como se todos os Daseins estivessem destinados a se projetarem única e exclusivamente em determinada direção. A plurivocidade é inerente à trajetória circular do ser da presença que acontece com e no tempo, é dizer, estando temporalmente enraizadas. Perlustrando esta senda, o filósofo e geopolítico russo Alexandr Dugin, lastreado na teoria do pluriversum planetário de autoria do ensaísta francês Alain de Benoist, preleciona: “o filósofo Martin Heidegger introduz o conceito de ‘Dasein’, ‘Ser-Aí’, descrevendo a estrutura do relacionamento do homem com a existência. De acordo com Heidegger, o ‘Dasein’ é a realidade e mentalidade primária, a racionalidade, a filosofia e a cultura são subsequentemente superestruturadas sobre ele. Na Teoria do Mundo Multipolar, o ponto de princípio e a afirmação da pluralidade de Daseins, ou seja, a garantia de que cada sociedade, cultura, etnia ou agrupamento nacional tem seu próprio Dasein e, partindo deles, ramificações de sistemas culturais, sociais, políticos, religiosos e filosóficos são subsequentemente criados. A pluralidade de Daseins e a busca por diferentes ‘mundos reais’ das nações da Terra baseadas nesse princípio, constituem a essência da filosofia da multipolaridade”. (DUGIN: 2012, p. 53)

Esse não é o lugar propício para tratarmos dos pormenores da teoria do mundo multipolar, bastando assinalar que tal prognóstico se orienta inteiramente pela proposta de construção de um pluriversum planetário no bojo do qual cada tradição encerra um universo dotado de latitudes e longitudes próprias. Essa coexistência de universos múltiplos (multiverso) constituiria uma alternativa ao esquema de poder do globalismo unipolar de cariz americanocêntrico, que não só ameaça culturas e tradições inteiras com um modelo civilizacional violento e neocolonialista, como também impõe entraves à conquista de uma real e efetiva autodeterminação dos povos, que, diga-se de passagem, a dogmática dos “direitos humanos” vem falhando reiteradamente em implementar. O círculo hermenêutico-filosófico instaurado pelo Dasein seria, conforme já mencionado alhures, a fonte de legitimidade não só para a redefinição da plataforma civilizatória e para a ressoberanização de comunidades políticas autonomamente constituídas como também para a inauguração de uma nova epistemologia, um novo modo de pensar as bases fundacionais do conhecimento humano.

Da mesma forma que para existir autenticamente a historicidade, a espacialidade, a linguisticidade, a mundanidade e todos os aspectos da realidade ontológica que, na condição de instrumentos vêm ao encontro na ocupação do manual devem estar enraizados na temporalidade originária, o que assegura a continuidade dos diversificados modos de ser tradicionais é sua projeção no tempo, com a ressalva que a tradicionalidade não constitui um mero instrumento a conferir operacionalidade aos entes que existem dentro de um mundo, mas, antes, a condição para que estes últimos funcionem em sincronia com a autenticidade do ser intramundano da presença. Disso não decorre que a presença depende da tradição para descobrir seu poder-ser mais próprio, até porque ela já é no vigor de ter sido (na unidade ek-stática da temporalidade), mas que com e através dos modos de ser tradicionais o estar-lançado em possibilidades adquire um sentido organizacional que passa a interferir na própria maneira com que encaramos as categorias existenciais do Dasein, a saber: ser-no-mundo, ser-com-os-outros e ser-para-a-morte. A tradição passa, então, a conferir estabilidade ou durabilidade às interações convivenciais da vida pública, sem, no entanto, engessar, congelar ou debilitar de alguma forma a dinamicidade dessas interações. É sempre importante lembrar que, mesmo integrado no mundo de uma tradição, a essência do Dasein está em jogo pelo simples fato de que ele existe, e, em existindo, isto é, sendo, tanto maior sua responsabilidade para consigo mesmo. O exemplo apresentado por Heidegger para ilustrar a dimensão dessa responsabilidade é o fardo que cada época carrega de escolher seus heróis, porque é partir da grandeza ou pequenez destes últimos é que será determinado o significado de toda a presença, e, a partir dele, revelada a totalidade do seu acontecer. “Na convivência em um mesmo mundo e na de-cisão por determinadas possibilidades, os destinos já estão previamente orientados. É somente na participação e na luta que se libera o poder do envio comum. O envio comum dos destinos da pre-sença em e com a sua ‘geração’ constitui o acontecer pleno e próprio da pre-sença”. (HEIDEGGER: 2005, p. 190)

Mas nem toda a luminosidade da filosofia heideggeriana poupou o mestre da floresta negra das críticas avassaladoras, muitas delas infundadas. Dentre os seus detratores mais ferrenhos encontra-se ninguém menos do que Julius Evola que, na condição de um dos maiores porta-vozes do tradicionalismo ocidental, reserva um capítulo inteiro de sua obra Cavalgar o Tigre à desmistificação do existencialismo filosófico. Evola basicamente coloca Sarte, Jaspers e Heidegger no mesmo balaio de gatos, acusando-os injustamente de terem encontrado uma espécie de justificação para o niilismo enquanto negação do “arquétipo do homem integrado na Tradição” e alegando fazerem uso de “[...] uma terminologia arbitrária inventada de propósito, que especialmente em Heidegger chega a ser inconcebível e insuportavelmente supérflua e abstrusa” – tradução livre do espanhol. (EVOLA: 1987, p. 87) E não para por aí! Ele chega mesmo a afirmar que o angustiar-se perante o nada do Dasein, somado ao caráter horizontal da analítica existencial denunciam seu suposto rasgo niilista.  

Em que pese o enorme respeito que nutrimos pela obra do barão italiano (tanto escrita como pictórica) e seu inquestionável prestígio verificado principalmente nos círculos tradicionalistas e esotéricos, não podemos nos furtar de reconhecer sua total incompreensão acerca da obra prima daquele que fez por merecer seu lugar de destaque no panteão dos filósofos mais proeminentes desde Platão. Pode-se dizer que Evola lança mão de uma distorção capciosamente negativista do conceito de “nada” que passará a tecer o fio de seu raciocínio degradante, sendo que, para Heidegger, o nada nunca foi uma instância negativa suscetível de ser apreendida por antítese daquilo que é. Muito pelo contrário! O angustiar-se perante o nada como modo de disposição fundamental da presença nos diz justamente que o nada só pode ser em conexão com o ente, muito embora não se confunda com ele, o que equivale a dizer que ele comporta tanto um dimensão positiva (que se revela no estar-lançado do Ser-Aí) quanto uma dimensão negativa e, por isso mesmo, nadificante. O nada seria, então, uma espécie de situação-limite não submetida ao princípio da não-contradição, e, por isso mesmo, ao rigor metodológico das equações científicas. Heidegger trata especificamente da questão do nada em ensaio intitulado “Que é Metafísica?”, onde é exposto da maneira mais elegante o aspecto transcendente do ser da presença suspenso dentro do nada e o fio condutor de uma metafísica da subjetividade. Nos dizeres de Heidegger, “o ser-ai humano somente pode entrar em relação com o ente se se suspende dentro do nada. O ultrapassar o ente acontece na essência do ser-aí. Este ultrapassar, porém, é a própria metafísica. Nisso reside o fato de que a metafísica pertence à ‘natureza do homem’. Ela não é uma disciplina da filosofia ‘acadêmica’, nem um campo de ideias arbitrariamente excogitadas. A metafísica é o acontecimento essencial no âmbito do ser-aí. Ela é o próprio ser aí. Pelo fato de a verdade da metafísica residir neste fundamento abissal possui ela, como vizinhança mais próxima, sempre à espreita, a possibilidade do erro mais profundo. É por isso que nenhum rigor de qualquer ciência alcança a seriedade metafísica. A filosofia jamais pode ser medida pelo padrão da ideia da ciência”. [3]

De todo o acima exposto, conclui-se que o Dasein não se exaure, nem de longe, na elaboração de um projeto antropológico – uma vez que o objetivo principal da analítica heideggeriana, do ponto de vista do método, é justamente comprovar a não redutibilidade do ser da presença ao campo das ciências ônticas -, o que, todavia, não nos impede de pensá-lo antropologicamente tendo em vista as múltiplas possibilidades existenciais que ele experimenta no interstício entre nascimento e morte e que atinge, por assim dizer, sua situação limite na angústia enquanto disposição fundamental de ser-para-a-morte. Enquanto vigor de ter sido, o Dasein é, ele mesmo, destino, na medida em que só pode ser própria e autenticamente dentro de um mundo por estar sempre presente no horizonte de temporalidade mediana. É no esquema horizontal da unidade ek-stática da temporalidade em sentido próprio e originário (na cura) que o ser dos entes intramundanos, em existindo, coloca em jogo sua própria essência atualizável e atualizante. Se empreendemos todo esse raciocínio de dissecação da estrutura do ser-no-mundo e da situação particularmente relevante de estar lançado em co-possibilidades existenciais, foi com o desiderato de elucubrar a diversificabilidade dos modos de ser tradicionais dentro de seus respectivos mundos de referência, porque é precisamente essa coexistência de vários mundos e, por conseguinte, de várias tradições – cada qual sincronizada com um ritmo de desenvolvimento próprio -, que o ser da presença encontra um significado a mais (um plus) para o seu poder-ser originário, a fim de que cada geração seja capaz de compreender e assumir o peso da responsabilidade envolvida na marcha em direção à (re)conquista de um significado ontológico para seus destinos, tarefa que pode vingar ou soçobrar, a depender do nível de comprometimento e da ferocidade com que cada povo luta, e, lutando, liberta-se do claustro da monotonia cotidiana. Mesmo não tendo sido nosso objetivo imediato, acabamos por verificar acidentalmente que a transcendência é inerente à condição humana que se projeta como Dasein, tema em que nos aprofundaremos em oportunidade futura, bastando, por ora, prelineá-lo.  

NOTAS   
              
[1] DUARTE, Rodrigo; NAVES, Gilzane. O Ser-para-a-morte em Heidegger. Disponível em: <<http://catolicaonline.com.br/revistadacatolica2/artigosn4v2/06-filosofia.pdf>>. Acesso às 02:30 do dia 24/07/2016.

[2] GUÉNON, René. O Que é Preciso Entender por Tradição?. Disponível em: <<http://www.reneguenon.net/IRGETGuenonOqueETradicao.html>>. Acesso às 02:32 do dia 24/07/2016.

[3] HEIDEGGER, Martin. Que é Metafísica?. Disponível em: <<http://legio-victrix.blogspot.com.br/search/label/Martin%20Heidegger>>. Acesso às 02:34 do dia 24/07/2016.

REFERÊNCIAS

DUGIN, Alexandr. Geopolítica do Mundo Multipolar. Curitiba: Austral, 2012.

EVOLA, Julius. Cabalgar el Tigre. Barcelona: Nuevo Arte Thor, 1987. 

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. I. Rio de Janeiro: Vozes, 2005

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol II. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade. Petrópolis: Vozes, 2012.

HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2003.

SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A Fundamentação da Ciência Hermenêutica em Kant. Belo Horizonte: Decálogo, 2008



domingo, 10 de abril de 2016

A Supra-Moralidade de Nietzsche Vista Desde a Ótica da Filosofia Perene

por: Gustavo Aguiar


Quando Nietzsche aduz que há algo de extremamente problemático com a moralidade dominante ou com o conjunto de morais prevalecentes em determinados tempo e espaço, chegando mesmo a defini-la como a “linguagem figurada das paixões” [1], ele parece penetrar o centro cardeal da philosofia perennis e abordar um tema que os membros desta escola jamais se furtaram de enfrentar com a máxima seriedade, qual seja: ao qualificar comportamentos em termos de bom e mau, justo e injusto, certo e errado, a moralidade circunscreve o universo do seu âmbito de incidência a um logos estritamente discursivo, dedicado inteiramente a verbalizações hermenêuticas que se inserem na órbita de uma racionalidade completamente divorciada do intelecto puro, fundado no Absoluto.

Aliás, a distinção entre razão cognoscitiva e intuição intelectual constitui o fundamento da legitimidade de todo o perenialismo, o que não significa, entretanto, que ambas gozam de uma autonomia funcional, como se os pensamentos secular e teológico consubstanciassem um fim em si mesmos. O ideal é que o sujeito, naturalmente dotado de razão e intuição se policie no sentido de não permitir que uma faculdade se sobressaia de modo a obnubilar ou mesmo silenciar a outra. Tal concepção coloca uma série de entraves ao alcance da consciência unitiva da Base divina, na medida em inculca na mente do intérprete uma confusão fatal entre as esferas da unidade e da multiplicidade, o que equivale a dizer, erroneamente, frise-se à exaustão, que o plano factual corresponde milimetricamente à beleza transcendental da Base divina, aquilo que os gregos chamavam de μετανοεῖν (metanóia).

A ideia de que o intelecto transcende a mera faculdade do uso da razão, e, logo, os limites de uma moralidade racionalmente concatenada, encontra eco em um dos principais arcanos da sabedoria perene, o qual Frithjof Schuon sintetiza nos seguintes dizeres:

“Uma das chaves para a compreensão da nossa verdadeira natureza e do nosso destino último é o fato de que as coisas deste mundo nunca são proporcionais à extensão real da nossa inteligência. Esta é feita pelo Absoluto, ou ela não é; entre as inteligências deste mundo, só o espírito humano é capaz de objetividade, o que implica – ou o que prova – que só o Absoluto permite a nossa inteligência poder inteiramente o que ela pode, e ser inteiramente o que ela é”. [2]    

No mesmo diapasão, René Guénon:

“O intelecto transcendente, para captar diretamente os princípios universais, deve ser ele mesmo de ordem universal; não é uma única faculdade individual, e considerá-lo como tal seria contraditório, pois não pode haver nas possibilidades do indivíduo o superar seus próprios limites, o sair das condições que lhe definem enquando indivíduo. A razão é uma faculdade própria e especificamente humana; mas o que está mais além da razão é verdadeiramente ‘não-humano’; é o que torna possível o conhecimento metafísico, e este, há que repeti-lo outra vez, não é um conhecimento humano”. [3]

Deduzir que no conteúdo de uma moralidade veiculada por palavras alberga a salvação absoluta, é um erro que orientalistas da envergadura de René Guénon já haviam apontado e desmascarado reiteradamente. Mas a preocupação de Guénon, como o próprio Schuon adverte, não era justapor acontecimentos factuais a uma moldura teorética, e sim organizar o arcabouço principiológico da filosofia perene [4], seus prolegômenos, o que não significa, entretanto, que nas latitudes da sua crítica ao Mundo Moderno descaibam considerações de ordem prática. Muito pelo contrário! Quando Guénon assevera que “é, aliás, uma singular ilusão, própria do ‘experimentalismo’ moderno, julgar que uma teoria pode ser provada pelos fatos, quando, na realidade, os mesmos fatos podem sempre explicar-se igualmente por diversas teorias diferentes” [5], isso serve, inclusive para desmistificar as reivindicações abusivas da ciência moderna, nela inclusa a “ciência da moral”, contra a qual Nietzsche não economiza antipatias.

É bem provável que Nietzsche nunca tenha se identificado significativamente com a filosofia perene, mas ao expressar em termos tão rigorosamente metafísicos um enunciado que poderia ser expresso de outro modo, ele não nos deixa escolha senão procurar compreendê-lo em sua melhor luz. Se o seguinte excerto não tivesse sido escrito pelo filósofo alemão, seria perfeitamente possível creditá-lo a um perenialista:

“Que existam nas proximidades do sol inumeráveis corpos opacos que jamais veremos é coisa que se pode inferir. Isto é um símbolo e poderíamos dizer que um moralista psicólogo não decifra o que está escrito nas estrelas a não ser como uma linguagem de símbolos e signos, que permite calar muitas coisas” (NIETZSCHE: 2010, p. 109)

Com efeito, por mais trabalhado e imponente que seja um símbolo, quer nas artes, na língua, ou na poesia, ele nunca nos comunicará mais do que aquilo que pode ser temporalmente assimilado. Aldous Huxley já fez as vezes de se manifestar nesse ínterim: “a natureza da Verdade-Feito não pode descrever-se por meio de símbolos verbais a que não lhe correspondem adequadamente. No melhor caso, só pode aludir-se a ela em termos de non sequitur e contradição” (HUXLEY, 1999, p. 123)

Esta é inclusive a razão pela qual a obra de Platão foi quase que totalmente construída com base em antinomias: ser racionalmente claro era, talvez, a última das preocupações do mestre da Academia, que deu prova de um engenho incomensurável no uso de símbolos e sinais como ferramentas imperfeitas, mas necessárias ao desvelamento extra-sensorial do Sumo Bem, desvelamento este que não pode ser senão intuitivo. Isso numa época em que inexistiam estudos aprofundados acerca da função simbólica da linguagem.

Mais adiante, prossegue Nietzsche, com inarredável destreza:

“Todas as morais que se referem ao indivíduo para fazer “sua felicidade”, nada mais são que compromissos com o perigo que ameaça a pessoa dentro de si mesma. São porventura mais que receitas contra suas paixões, contra suas boas e más inclinações, quando tendem a mandar e dominar como amos; astucias e pequenas ou grandes artimanhas com calor de remédio caseiro? Todas têm formas escuras e absurdas por que se dirigem a todos e generalizam onde deveriam particularizar. Todas se expressam de modo absoluto e se consideram absolutas. A todas falta o sazonamento para serem suportáveis, e talvez ainda aliciantes quando contêm especiarias em grande quantidade e têm um odor perigoso, especialmente ‘do mundo de lá’, tudo isto misturado com o intelecto vale bem pouca coisa e não pode ser chamado ‘ciência’ e ainda menos ‘sapiência’, dizemos e repetimos, judiciosidade, judiciosidade, judiciosidade, juntamente com imbecilidade, imbecilidade, imbecilidade (...)” – grifo nosso (NIETZSCHE: 2010, p. 110)    

Aqui vemos a moral servindo de limitação ao Outro que habita o universo já bastante circunscrito do nosso microcosmo; é, aliás, este Outro, a “pessoa dentro de si mesma” que se encontra ameaçado. Transcender esse universo em direção ao intelecto “puro” é um ato de transfiguração que exige mais um esforço intuitivo do que propriamente uma moralidade racional que não consegue, por sua própria conta e risco, ir além do significado do próprio símbolo. Quando a moral humana caminha em direção ao símbolo, seu destino inevitável é chocar-se violentamente contra ele. Isso porque, conforme já elucidado, razão e intelecção são duas coisas completamente diferentes.

Na célebre preleção se Frithjof Schuon:

“O Infinito, por sua irradiação operada, por assim dizer, pela pressão – ou pelo transbordamento – das inumeráveis possibilidades, transpõe a substância do Absoluto, a saber, o Sumo Bem, para a relatividade; esta transposição dá lugar a priori à imagem refletida do Bem, a saber, o Ser criador. O Bem, que coincide com o Absoluto, prolonga-se assim em direção à relatividade e dá lugar em primeiro ao Ser, que contém os arquétipos, e depois à Existência, que os manifesta sob modos indefinidamente variados e segundo os ritmos dos diversos ciclos cósmicos”. (SCHUON: 2015, p. 11)

A moral pertence a este último domínio – o domínio da Existência, e sua noção de Bem e Mal, bem como os meios de que dispõe para constranger rebanhos inteiros a obedecerem cegamente seus imperativos, já foi, neste estágio de projeção do Ser, dissolvida e relativizada na esfera da multiplicidade. Ela está tão distante do Absoluto ou Sumo Bem que não pode significar ordinariamente mais do que subjetivismo puro e simples. E o que Nietzsche nos diz, embora não com o mesmo fervor espiritual que inspirou tantos hierofantes da escola perenialista é exatamente isso. A essência da filosofia perene encontra-se espalhada por toda a bibliografia nietzschiana. Nos limitamos aqui a extrair alguns fragmentos correspectivos a estes ensinamentos, que tratam especificamente da questão da moralidade, sem a mais mínima pretensão de esgotar o assunto.


NOTAS:

[1] NIETZSCHE. F. Wilhelm. Além do Bem e do Mal, p. 100.   
  
[2] SCHUON, Frithjof. Religio perennis, disponível em: https://fschuon.files.wordpress.com/2014/11/religio-perennis.pdf


[4] SCHUON, Frithjof. René Guénon: Definições, disponível em: https://fschuon.files.wordpress.com/2013/12/rg_por_fs.pdf

[5] GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno, p. 45.


REFERÊNCIAS:

NIETZSCHE. F. Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Hemus: Curitiba, 2001.

GUÉNON, René: Crise do Mundo Moderno. Clube do Tarô: São Paulo, 2007.

SCHUON, Frithjof. Nos Caminhos da Religião Perene. WWW.FSCHUON.NET: São José dos Campos: São Paulo, 2015.

HUXLEY, Aldous. A Filosofia Perene. Editorial Sul-Americana: Buenos Aires, 1999.

sábado, 26 de março de 2016

Kubrick e o Labirinto

por: Gustavo Aguiar

Stanley Kubrick pertence àquela classe sui de cineastas aclamados pela crítica em razão de diversos fatores; da versatilidade associada à conjugação de elementos plúrimos (verbais, simbólicos, visuais, acústicos, etc) em tomadas excessivamente longas para os padrões hollywoodianos ao manejo da habilidade pouco ortodoxa de mergulhar o espectador em uma espécie de transe hipnótico, o que requer a posse de um conhecimento aguçado em matéria de neurolinguística e comunicação subliminar.

Mas o cinema de Kubrick se notabiliza, sobremaneira, pelo domínio irretocável de uma técnica pouquíssimo explorada pelos grandes luminares da cinematografia mundial: a sobreposição de camadas, cujo exemplo mais expressivo na filmografia kubrickiana recai sobre O Iluminado, película adaptada do horror ficcional homônimo de Stephen King.

O Documentário “O Labirinto de Kubrick” (título original: Room 237) percorre a trama d’O Iluminado com o condão de oferecer a análise topográfica de um vasto apanhado de cenas – nem sempre emblemáticas, sublinhe-se – que sugerem que Kubrick não só era mestre em encaixar histórias paralelas dentro da estrutura do pano de fundo do enredo original, como também em fazer com que esses “sub-contextos” estrategicamente difundidos nos lugares mais improváveis de cada tomada se comuniquem entre si, formando um composto orgânico de partículas geometricamente aglutinadas, similar à imagem de um quebra-cabeças. Nesse mister, Kubrick se revelara, muito mais do que um reles cineasta, um mago da comunicação audiovisual.

O entrelaçamento da arte vitoriana e das sinfonias de Mozart e Bethoven com o figurino retro-cyberpunk típico de cenários pós-apocalípticos concorre, outrossim, para a modulação da estética de Laranja Mecânia e 2001: Odisseia no Espaço, mas, distintamente destes últimos, O Iluminado desafia os limites da percepção sensorial por conseguir ser infinitamente mais complexo do que aparenta prima facie, sem precisar, para tanto ,recorrer ao imaginário freudiano de Laranja Mecânica (muito menos evidente na obra de Anthony Burguess, diga-se de passagem) ou ao psicodelismo extremado de 2001.   

A intensificação progressiva do clima de esquizofrenia paranoide d’O Iluminado é algo sem precedentes que, por isso mesmo, não pode ser experimentado nem sequer remotamente nas páginas do original de Stephen King. Inclusive, indícios apontados pelo documentário nos garantem que King quase “enlouqueceu” ao se aventurar no desvelamento do multiverso das incontáveis subcamadas do filme de Kubrick, até perceber que O Iluminado versava, dentre outros assuntos destituídos de conexão imediata, sobre a chacina dos nativos norte-americanos perpetrada pelos colonos durante a guerra civil e sobre a controvertida viagem do homem à lua patrocinada pelo programa Apolo 12 da NASA, para o qual Kubrick havia supostamente trabalhado.  

Nesse sentido, O Iluminado assemelha-se a um edifício monstruoso construído em cima de um terreno movediço, tamanha a dificuldade de, sob a perspectiva do observador externo, enxergar todos os seus andares como a imagem congelada no fundo de um estereoscópio monocular, posto que o térreo seria “engolido” antes disso, cedendo lugar a uma sucessão ininterrupta de novos e mais elaborados térreos; isso tudo por uma razão muito simples: o formato “padrão” de armazenamento da mídia eletrônica impossibilita que o espectador apreenda de maneira simultânea a interação de todos os detalhes meticulosamente espalhados em cada ângulo de cada cena. E esse limite, nem mesmo a genialidade de Kubrick foi capaz de superar.     

A seu modo, Kubrick foi um xamã submetido a diversas limitações materiais na transmissão da sua experiência singular ao grande público, alguém que, mesmo tentando “se comunicar na língua dos homens”, acabou se tornando grande demais para sua própria época. Não obstante, nem tudo foram rosas em sua trajetória. Impende acrescentar que ele nunca perdeu a oportunidade de se valer de seu inquestionável talento para veicular propaganda pacifista, vide Doutor Fantástico e Nascido Para Matar, ambos recheados com a mesma baboseira insossa que encheu os cofres de Hollywood no auge do Woodstock. Não foram poucos os diretores renomados que se aproveitaram deste período para vociferarem contra os “horrores da guerra”, mas Kubrick, em especial, perdeu a chance de se abster de engrossar o coro.

Talvez O Iluminado encante justo por não adentrar o mérito de questões políticas, permanecendo irradiante de uma beleza ao mesmo tempo nebulosa e escancarada. Kubrick basicamente logrou transformar a história de uma família comum cujo patriarca arranja um emprego de zelador de um hotel e acaba sendo “possuído” pelos espíritos que nele habitavam desde períodos imemoriais em uma compilação faraônica de eventos históricos e informações autobiográficas capazes de, por si sós, provocarem um nó na cabeça do espectador. 

Talvez as possibilidades de obtermos um panorama completo do labirinto de Kubrick tenha morrido com o próprio Kubrick, mas as pistas que ele deixou para trás nos exortam continuamente a relermos a História sob uma perspectiva diferenciada da que costumamos adotar. 

sábado, 19 de março de 2016

Breves Considerações Acerca da Soberania Nuclear

por: Gustavo Aguiar


“Quando se constrói a bomba atômica o que se está dizendo é: eu sou adulto, eu deixei de ser criança!” 

– Enéas Carneiro


A soberania nuclear é, de longe, uma das questões mais anatematizadas pelos veículos de comunicação de massa. A simples menção ao assunto tem sido suficiente para provocar náuseas em uma quantidade astronômica de brasileiros, que acredita piamente que propugnar pela prerrogativa de um país terceiro-mundista como Brasil fabricar bombas atômicas constitui violação frontal aos direitos humanos na comunidade internacional. Pois saiba, prezado leitor, que isso é exatamente o que os engenheiros sociais por trás da Organização das Nações Unidas e de Estados-títere por ela instrumentalizados querem que você acredite.

Malgrado a História nunca ter sido uma disciplina muito popular entre os nossos compatriotas, é de bom alvitre recordar o período obscuro da Guerra Fria, quando o mundo esteve a um passo de voar pelos ares feito uma tampa de chaleira em ebulição durante o chá da tarde.

De um lado, os Estados Unidos, detentores do monopólio da energia atômica desde Hiroshima e Nagasaki, conspiram para transformar Cuba em seu mais novo quintal. Doutro, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas efetivam a instalação de ogivas nucleares na ilha caribenha.

O clima de tensão bipolar evoluiu ao ponto de desencadear o que militares norte-americanos denominaram mutual assured destruction (acrônimo MAD), consistente na estratégia da intimidação: um dos pólos, munido até os dentes com o mais sofisticado arsenal de destruição em massa procura, através da propaganda militar, acuar o adversário na expectativa de que este último recolhesse suas coisas e fosse embora, sem deixar vestígios. Pronto! O holocausto nuclear já não era motivo de preocupação para autoridades diplomáticas, e, ao menos provisoriamente, o mundo podia dormir sossegado.

O problema é que o outro lado também começa a investir maciçamente em intimidação, e as prospectivas da corrida armamentista voltam a se tornar ameaçadoras.

Poder-se-ia contra-argumentar, diante disso, que a Guerra Fria é a prova cabal de que nenhuma potência do globo deveria, em quaisquer circunstâncias, titularizar o direito de construir suas próprias tecnologias de aniquilação. Mas isso não só é irreal, como contribui para o engessamento do debate acerca do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), criminosamente ratificado pelo Brasil em 1998, durante a gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.  

Podemos extrair de tal panorama um sem número de consequências negativas que impactaram drasticamente o potencial de autodeterminação soberana do Estado brasileiro em face dos interesses geopolíticos do globalismo unipolar. A primeira é intuitiva, mas não menos importante: o território brasileiro, assim como Cuba, corre sérios riscos de ser disputado em uma eventual bipolarização do espectro ideológico, haja vista que a experiência nunca falhou em demonstrar que os únicos países verdadeiramente respeitados por hiperpotências imperialistas são aqueles que, como o Irã de Ahmadinejad, não hesitam em turbinar suas usinas de enriquecimento de urânio, usinas estas que os EUA procuraram reiteradamente sabotar por meio de supercomputadores quânticos projetados especificamente para esta finalidade.

Mais perigosas do que a bomba atômica são armas cuja existência a massa ignara, em seu estado de catatonia induzida, não imagina sequer remotamente.

Se tem uma coisa que os estrategistas norte-americanos aprenderam com a Guerra Fria foi que desarmar adversários em potencial é uma maneira bastante promissora de eliminar o “segundo estágio” do MAD (aquele em que o inimigo, provocado, se vê tentado a revidar, aumentando significativamente a probabilidade de uma destruição em larga escala). Observe que não estamos nos referindo a algo que pode vir a acontecer em um futuro hipotético, mas a uma coisa que já acontece em níveis inimaginavelmente superiores ao que estamos habituados a processar.

O povo brasileiro está tão à mercê de incursões imperialistas quanto a Palestina das bombas de fósforo branco israelenses.  Possuir o direito de fabricarmos nossa própria tecnologia nuclear não é, absolutamente, um privilégio, mas uma necessidade premente que já deveria ter sido sanada há muito tempo, como sugeriu, outrora, o injustamente vilipendiado Enéas Carneiro - que Deus o tenha.

Fato é que tanto Fernando Henrique quanto Luís Inácio Lula da Silva se provaram incompetentes no trato com a soberania nacional, especificamente no tocante à questão nuclear: o primeiro por ter municiado a fragilização do Estado brasileiro ao assinar o Tratado de Não-Proliferação, desarmando seu próprio povo;  o segundo por sugerir ingenuamente em 2009 o desmantelamento dos arsenais nucleares de todos os países do globo, estribado na frágil premissa  de que isso não se coaduna com os princípios “democráticos”.

As frequentes tentativas por parte dos EUA no sentido de atrasar o desenvolvimento do programa nuclear norte-coreano patenteiam o receio de Washington em permitir que um inimigo a altura da extinta URSS coloque entraves à hegemonia por ele capitaneada. Basicamente, a bomba atômica é, hoje, um dos poucos elementos hábeis a restituir autonomia a países dessoberanizados. Se a República Popular Democrática da Coreia do Norte ainda não foi alvo de uma guerra parecida com a do Vietnã, isso se deve inteiramente à atitude patriótica de não abrirem mão da defesa nacional.

A pretensa instauração de um controle dos programas nucleares de nações soberanamente instituídas, supostamente vocacionada para a “pacificação” dos meios de produção de energia nuclear suscita uma questão crucial, que pode ser resumida na seguinte parêmia: quis custodiet ipsos custodes? (quem vigia os vigilantes?) Ora, se há controle, há um painel, e se há um painel, há um operador. A que interesses serve o operador do painel de controle da Organização das Nações Unidas?

Acreditamos ter respondido a esta pergunta.   

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Revolução Nossa de Cada Dia

por: Gustavo Aguiar


Quando ouvimos falar em revolução, somos quase que imediatamente reconduzidos pelo nosso “mapa mental associativo” a pensar em uma mobilização política de média ou grande escala vocacionada para a ruptura total do status quo, ou, como diriam os constitucionalistas modernos: a obliteração do poder constituído em virtude do rechancelamento do poder constituinte originário. O primeiro a postular a distinção tipológica entre Constituições originárias e derivadas foi Karl Loewenstein (CARVALHO: 2013, p. 61)

A enciclopédia britânica conceitualiza uma revolução como sendo “(...) a ruptura com a organização política e social vigente, com as condutas aceitas como éticas ou com o modo tradicional de pensar, crer e agir. Paradoxalmente, o sentido atual da palavra é oposto ao de sua origem etimológica, o vocábulo medieval latino revolutio, que significa retorno ou volta. Termo científico de emprego usual em astronomia ou geometria, só a partir do século XVIII perdeu o sentido de processo cíclico contínuo, de fluxo e refluxo ou retorno a um estado anterior melhor ou mais puro. Modernamente, passou a ser aplicado ao domínio geral das atividades sociais, políticas, econômicas e culturais com o sentido de reviravolta ou mudança radical”. (Grande Enciclopédia Barsa, vol. 12: 2004, p. 326)   
  
Destarte, foram as revoluções burguesas que explodiram na Europa durante o século XVIII que imprimiram à palavra de ordem revolucionária um significado antitético à sua compreensão genealógica. Daí a sucessão de erros crassos de interpretação por parte de autoproclamados “agentes transformadores da realidade”.

Tais considerações adquirem uma importância extraordinária para o correto entendimento dos materialismos histórico e dialético balizadores da teoria marxista, porque é tão somente através delas que podemos perceber seus limites semânticos e operacionais desde a perspectiva da Tradição Primordial, segundo a qual não se rompe com um estado de coisas pretensamente vulgar ou abnorme senão com o intuito de resgatar um topos anterior à instituição daquilo que os contratualistas denominaram Pacto Social. Obviamente, esse espaço mental não se refere a nada comparável com imperativos de natureza política, social, moral ou antropológico, mas pura e simplesmente a comandos espirituais.

Toda revolução é mais um regresso ao nascedouro espiritual do que a supressão da ordem vigente lastreada na fé cega no progresso. Por isso, em um ambiente tecnocrático-industrial, um ato de revolta setorizado não pode significar mais que insurgência, conquanto extirpado o coeficiente beligerante de dita sublevação. Em termos mais simplificados: não há, e nem pode haver revolução (empregada aqui em acepção tradicional) num mundo governado pelo progresso linear, haja vista que o pressuposto de legitimidade da conduta revolucionária é a inalterabilidade das condições estáticas do status quo ante. Um fluxo que não dá azo ao refluxo é um movimento dessubstancializado, uma “cabeça sem cérebro”, em terminologia platônica.

Nesse diapasão, Alexandr Dugin pontifica, acertadamente que “a revolução não foi apenas sancionada pela modernidade, ela foi sua própria questão. O reconhecimento da insuficiência do homem, como um princípio antropológico ou ontológico, do mesmo modo, foi reconhecida e declarada como uma vantagem, como uma reconquista da identidade negativa dos contos pequeno-burgueses sobre a identidade positiva do homem. Desse modo, a modernidade chegou mesmo à sua própria exaustão e renasceu como pós-modernidade ao fim do século XX.  Desse modo, tudo que era empírico, adequado, e óbvio na modernidade, deixou de sê-lo na pós-modernidade. Mas se a revolução foi um ponto da modernidade, na pós-modernidade ela se torna impossível, na medida em que a própria modernidade se tornou impossível. Mais ainda, saindo da modernidade e entrando na pós-modernidade nós vamos além da possibilidade de revolução, a revolução passa a ser fatorada. Desse modo, a pós-modernidade não nega a modernidade diretamente. Ela não diz ‘não’ à modernidade e à revolução, mas ‘sim’ a seus simulacros.  Ela compreende bem, que de modo a prevenir a revolução, esta deve ser simulada. Assim, o sentido da pós-modernidade é uma permanente simulação da revolução”. (DUGIN: 2012, p. 205)

E é justamente pelo fato de a pós-modernidade – tendo assimilado caracteres específicos da modernidade - ser uma espécie de matriz pré-ontológica de simulacros de movimentos revolucionários que se torna dificultosa a tarefa de sepultá-la como paradigma sócio-político-antropológico-existencial. A era das revoluções propriamente dita cedeu espaço à era das pós-revoluções, onde já não se reconhece o poder criativo de uma organização pretensamente revolucionária; no máximo, o ímpeto recreativo dos quadros de tal organização. Há fluxo sem refluxo: projeção holográfica sem uma ideia que lhe dê suporte. Na prática, não se transforma a realidade a partir de um projeto pré-concebido; sua estrutura é “dobrada” como casinhas de cartolina na superfície de uma maquete de isopor para nos persuadirmos de que atuamos sobre uma conjuntura inteiramente nova, ao passo que o que fazemos é reproduzir velhos fetiches em uma plataforma essencialmente idêntica à que pretendemos superar.

Reflexo de tal impressão encontra-se nitidamente cristalizado no giro científico, que operou mudanças radicais na ideia central do que outrora era concebido como Alquimia e Astrologia, e que se desnaturaram na química e na astronomia, respectivamente.

Nos dizeres de René Guénon:

“O caso da Química é talvez ainda mais claro e característico; e a ignorância dos modernos a respeito da Alquimia é pelo menos tão grande como no que diz respeito à Astrologia. A verdadeira Alquimia era essencialmente uma ciência de ordem cosmológica e, ao mesmo tempo, era aplicável também à ordem humana, em virtude da analogia do “macrocosmos” e do “microcosmos”. Além disso, era construída expressamente tendo em vista permitir a sua transposição do domínio puramente espiritual, o que conferia aos seus ensinamentos um valor simbólico e uma significação superior, e fazia dela um dos tipos mais completos das ‘ciências tradicionais’. O que deu origem à Química moderna não foi essa Alquimia, com a qual ela não tem, em suma, qualquer relação; foi antes uma deformação, um desvio no sentido mais rigoroso da palavra. Esse desvio se originou, talvez desde a Idade Média, da incompreensão de alguns que, incapazes de penetrar o verdadeiro sentido dos símbolos, tomaram tudo ao pé da letra e, julgando que se tratava de operações materiais, lançaram-se numa orientação mais ou menos desordenada. Foram esses, que os alquimistas qualificavam ironicamente de ‘separadores’ e de ‘queimadores de carvão’, os verdadeiros precursores dos químicos atuais; e é assim que a ciência moderna se edifica com os restos das ciências antigas, com os materiais rejeitados por estas e abandonados aos ignorantes e aos ‘profanos’. Acrescento ainda que os chamados renovadores da Alquimia, por seu lado, alguns dos quais se encontram entre os nossos contemporâneos, só prolongam esse mesmo desvio, e as suas pesquisas estão tão afastadas da alquimia tradicional como as dos astrólogos o estão da antiga Astrologia. É por esse motivo que tenho o direito de afirmar que as ‘ciências tradicionais’ do Ocidente se encontram realmente perdidas para os modernos”. (GUÉNON: 2007, pgs. 47 e 48)  

Tais informações nos permitem concluir tranquilamente que a modificação do entendimento do que, em última instância, viria a significar uma revolução em sentido estrito está intimamente conectada com as formas anômalas que sucederam as ciências tradicionais ao ponto de com elas se confundirem totalmente na atualidade. Nos deparamos aqui com um problema semiótico: com a questão de procurar abstrair significados diferentes de uma mesma expressão linguística.    

Portanto, quando ouvimos astrônomos contemporâneos cacarejarem ‘revolução dos astros’ com ares de quem redescobriu a pólvora, ainda que essa ideia se estribe em um locus de circularidade do movimento dos corpos celestes, não alcança a integridade da compreensão da antiga Astrologia, na medida em que os antigos não extraíam um “resultado” da observação empírica de uma sucessão de estados fenomênicos regidos pelo princípio da causalidade das ciências naturais, mas sentiam a derivação de estágios de consciência mais ou menos influenciados pela posição dos astros. Isso é o que a ciência moderna presunçosamente denomina “senso comum”, e é nesse contexto em que o charlatanismo foi alçado à condição de diretiva axiológica que se insere a maior parte dos quiproquós acerca do significado do agir revolucionário.

Em sua acepção mais pura, a revolução é algo diametralmente oposto à ideia de progresso cumulativo. Isso levou autores como Guillaume Faye, Alain de Benoist, Alain Soral e o próprio Alexandr Dugin a idealizarem o que se convencionou denominar “Revolução Conservadora”.

Com efeito, há uma série de valores, crenças, ritos e costumes tradicionalmente arraigados na estrutura da realidade que devem ser conservados sem que isso implique em inércia e conformismo imobilizante. A revolução seria, então uma cabeça de Janus, com uma das feições voltada para um passado que precisa ser resgatado e outra virada para o futuro que deverá ser construído em sincronia com esse resgate.

Se, por um lado, a revolução é um modo defensivo de se livrar dos velhos vícios que impregnaram os mais diversificados sistemas dogmáticos, por outro é um modo ofensivo de acrescentar novas virtudes ao repertório sócio-cultural daqueles que serão governados pelos membros do levante. Poderíamos dizer, em arremate, que a revolução é uma espécie de anamnese programada.

Eis o potencial criativo do móbil revolucionário!   

   

REFERÊNCIAS:


DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política. Editora Austral: Curitiba, 2012.

GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno. Clube do Tarô: São Paulo, 2007.

___.Grande Enciclopédia Barsa, vol. 12. Barsa Planeta Internacional: São Paulo: 2004.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional, vol. 1: Teoria do Estado e da Constituição. Del Rey: Belo Horizonte, 2013.


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O Tao Te King e a Dialética do Absurdo

por: Gustavo Aguiar

“Para ganhar conhecimento, adicione coisas todos os dias. Para ganhar sabedoria, elimine coisas todos os dias”. – Lao Tsé

Traçar um paralelo de diferenças entre as obras de Albert Camus e Lao Tsé seria uma tarefa demasiado enfadonha para qualquer um que tenha mergulhado em seus escritos ao ponto de deles extrair algo de verdadeiramente enriquecedor.  Nem é este o nosso desiderato, pelo que nos limitaremos a abordar aqui, da forma mais clara e sucinta possível – afinal “o excesso de palavras leva ao esgotamento” - um ponto específico no qual ambos os pensamentos convergem de maneira quase inextricável: a dialética do absurdo, em cuja antinomia o espírito nostálgico do homem se vê divorciado do mundo circundante, tornando-se “um estrangeiro de si mesmo” e o não fazer (wu wei) da gnosis taoísta como o modo através do qual o Verbo (Tao) se comunica conosco em silêncio tumular, é dizer, sem pronunciar sequer uma única sílaba.

No sexto aforisma do Tao Te King, Lao Tsé nos revela¹ que “quando todos sob o céu afirmam que o belo é belo, o feio se manifesta. Quando todos pensam saber tão bem o que é bom, o mau se manifesta”.  Rijckenborgh e Petri traduzem bem a profundidade dessas palavras ao assinalarem que, na referida passagem, Lao Tsé não fez menos do que anunciar o papel do sábio diante da ordem dialética do microcosmo, fundamentada quase que totalmente em contradições, de que belo e feio, bem e mal constituem apenas os exemplos mais recorrentes.

Não outro é o significado que Albert Camus, ao tratar do suicídio filosófico como uma questão de tudo ou nada², imprime à dialética do absurdo, composta essencialmente por antinomias:

“O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Isto é o que não devemos esquecer. A isto é que devemos nos apegar, porque toda a consequência de uma vida pode nascer daí. O irracional, a nostalgia humana e o absurdo que surge de seu encontro, eis os três personagens do drama que deve necessariamente acabar com toda a lógica de que uma existência é capaz”. (CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, p. 39)

Nesse sentido, o feio existe para lembrar ao belo que este último não passa de uma ilusão, um simulacro imposto à percepção sensorial que deflui de uma espécie de distorção egoística do átomo primevo. O mesmo ocorre com o mal, cujo sentido é restituir ao bem sua insignificância originária, anterior à moldura estética em que habitualmente o enxergamos. Em termos mais simplificados: trata-se de nos libertarmos dos grilhões que nos mantém presos à condição humana e atingir um estado de ócio contemplativo que nos permita acessar a beleza edênica da eternidade com o coração, em vez de com o nervo óptico.

O esplendor da beleza do Tao possui uma dimensão que não pode ser verbalizada ou transmitida por vias discursivas a um interlocutor sedento de seus ensinamentos.

Ele é a irradiação vivente e magnética que une a totalidade das consciências despertas na onimanifestação do macrocosmo. Por isso, a lei da sabedoria prescreve àqueles que pretendem decifrar o Tao o método do não fazer. Este, por sua vez não é, como poderíamos imaginar, uma atitude negativa em face das vicissitudes mundanas, mas “uma alegria calma e silenciosa; prossegui nessa calma alegria silenciosa, em total autorrendição ao átomo original, o Reino em vós. Isso é ‘adotar o não fazer’. Isso é compreender o ensinamento sem palavras. ‘Não sou eu que devo crescer, mas Ele, o Outro, que é maior do que eu. Eu devo diminuir, eu devo desaparecer nesse Outro, o ser oculto no átomo original’” (RIJCKENBORGH, J. van; PETRI, Catharose de. A Gnosis Chinesa: comentários sobre o Tao Te King de Lao Tsé, p. 40)

O Tao nos fornece as ferramentas de que necessitamos para, em contrita resignação, buscarmos sincronizar³ a circularidade absurda da dialética que rege a esfera deste mundo - em que o amor não pode remeter a nada que não seja ao ódio, e a beleza, a nada que não seja à feiura - com a ascese espiralada do supra-mundo, onde não há circunlóquio de manifestações ou remissões circulares de antíteses conceituais, mas tão somente a subida de degraus que nunca tornam a se repetir na senda que nos conduzirá, ainda que em questão de milênios, de éons, ao espírito do vale, ao Reino de Shamballah:

“Vede o caminho – Tao

Segui o caminho – Te

Compeendei o caminho – King”.


NOTAS:

¹ Emprego o vocábulo revelação em acepção gnóstica do ouvir o chamado do Deus em nós.

² Para Camus, ou o ser aceita a realidade absurda em que ele vive ou renuncia sua existência por meio do suicídio. Tertium non datur.

³  O Tao não promete a experiência transcendental do espírito como faz um sem número de escolas ocultistas, não raro oriundas de seitas new age, mas tão somente o auto-equilíbrio que nos permite conhecer em vida um pouco do caminho que só começaremos a trilhar efetivamente após a morte.

REFERÊNCIAS:

RIJCKENBORGH, J. van; PETRI, Catharose de. A Gnosis Chinesa: comentários sobre o Tao Te King de Lao Tsé. Lectorium Rosicrucianum: São Paulo, 2010.


CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. BestBolso,: Rio de Janeiro, 2010.