sábado, 27 de fevereiro de 2016

Revolução Nossa de Cada Dia

por: Gustavo Aguiar


Quando ouvimos falar em revolução, somos quase que imediatamente reconduzidos pelo nosso “mapa mental associativo” a pensar em uma mobilização política de média ou grande escala vocacionada para a ruptura total do status quo, ou, como diriam os constitucionalistas modernos: a obliteração do poder constituído em virtude do rechancelamento do poder constituinte originário. O primeiro a postular a distinção tipológica entre Constituições originárias e derivadas foi Karl Loewenstein (CARVALHO: 2013, p. 61)

A enciclopédia britânica conceitualiza uma revolução como sendo “(...) a ruptura com a organização política e social vigente, com as condutas aceitas como éticas ou com o modo tradicional de pensar, crer e agir. Paradoxalmente, o sentido atual da palavra é oposto ao de sua origem etimológica, o vocábulo medieval latino revolutio, que significa retorno ou volta. Termo científico de emprego usual em astronomia ou geometria, só a partir do século XVIII perdeu o sentido de processo cíclico contínuo, de fluxo e refluxo ou retorno a um estado anterior melhor ou mais puro. Modernamente, passou a ser aplicado ao domínio geral das atividades sociais, políticas, econômicas e culturais com o sentido de reviravolta ou mudança radical”. (Grande Enciclopédia Barsa, vol. 12: 2004, p. 326)   
  
Destarte, foram as revoluções burguesas que explodiram na Europa durante o século XVIII que imprimiram à palavra de ordem revolucionária um significado antitético à sua compreensão genealógica. Daí a sucessão de erros crassos de interpretação por parte de autoproclamados “agentes transformadores da realidade”.

Tais considerações adquirem uma importância extraordinária para o correto entendimento dos materialismos histórico e dialético balizadores da teoria marxista, porque é tão somente através delas que podemos perceber seus limites semânticos e operacionais desde a perspectiva da Tradição Primordial, segundo a qual não se rompe com um estado de coisas pretensamente vulgar ou abnorme senão com o intuito de resgatar um topos anterior à instituição daquilo que os contratualistas denominaram Pacto Social. Obviamente, esse espaço mental não se refere a nada comparável com imperativos de natureza política, social, moral ou antropológico, mas pura e simplesmente a comandos espirituais.

Toda revolução é mais um regresso ao nascedouro espiritual do que a supressão da ordem vigente lastreada na fé cega no progresso. Por isso, em um ambiente tecnocrático-industrial, um ato de revolta setorizado não pode significar mais que insurgência, conquanto extirpado o coeficiente beligerante de dita sublevação. Em termos mais simplificados: não há, e nem pode haver revolução (empregada aqui em acepção tradicional) num mundo governado pelo progresso linear, haja vista que o pressuposto de legitimidade da conduta revolucionária é a inalterabilidade das condições estáticas do status quo ante. Um fluxo que não dá azo ao refluxo é um movimento dessubstancializado, uma “cabeça sem cérebro”, em terminologia platônica.

Nesse diapasão, Alexandr Dugin pontifica, acertadamente que “a revolução não foi apenas sancionada pela modernidade, ela foi sua própria questão. O reconhecimento da insuficiência do homem, como um princípio antropológico ou ontológico, do mesmo modo, foi reconhecida e declarada como uma vantagem, como uma reconquista da identidade negativa dos contos pequeno-burgueses sobre a identidade positiva do homem. Desse modo, a modernidade chegou mesmo à sua própria exaustão e renasceu como pós-modernidade ao fim do século XX.  Desse modo, tudo que era empírico, adequado, e óbvio na modernidade, deixou de sê-lo na pós-modernidade. Mas se a revolução foi um ponto da modernidade, na pós-modernidade ela se torna impossível, na medida em que a própria modernidade se tornou impossível. Mais ainda, saindo da modernidade e entrando na pós-modernidade nós vamos além da possibilidade de revolução, a revolução passa a ser fatorada. Desse modo, a pós-modernidade não nega a modernidade diretamente. Ela não diz ‘não’ à modernidade e à revolução, mas ‘sim’ a seus simulacros.  Ela compreende bem, que de modo a prevenir a revolução, esta deve ser simulada. Assim, o sentido da pós-modernidade é uma permanente simulação da revolução”. (DUGIN: 2012, p. 205)

E é justamente pelo fato de a pós-modernidade – tendo assimilado caracteres específicos da modernidade - ser uma espécie de matriz pré-ontológica de simulacros de movimentos revolucionários que se torna dificultosa a tarefa de sepultá-la como paradigma sócio-político-antropológico-existencial. A era das revoluções propriamente dita cedeu espaço à era das pós-revoluções, onde já não se reconhece o poder criativo de uma organização pretensamente revolucionária; no máximo, o ímpeto recreativo dos quadros de tal organização. Há fluxo sem refluxo: projeção holográfica sem uma ideia que lhe dê suporte. Na prática, não se transforma a realidade a partir de um projeto pré-concebido; sua estrutura é “dobrada” como casinhas de cartolina na superfície de uma maquete de isopor para nos persuadirmos de que atuamos sobre uma conjuntura inteiramente nova, ao passo que o que fazemos é reproduzir velhos fetiches em uma plataforma essencialmente idêntica à que pretendemos superar.

Reflexo de tal impressão encontra-se nitidamente cristalizado no giro científico, que operou mudanças radicais na ideia central do que outrora era concebido como Alquimia e Astrologia, e que se desnaturaram na química e na astronomia, respectivamente.

Nos dizeres de René Guénon:

“O caso da Química é talvez ainda mais claro e característico; e a ignorância dos modernos a respeito da Alquimia é pelo menos tão grande como no que diz respeito à Astrologia. A verdadeira Alquimia era essencialmente uma ciência de ordem cosmológica e, ao mesmo tempo, era aplicável também à ordem humana, em virtude da analogia do “macrocosmos” e do “microcosmos”. Além disso, era construída expressamente tendo em vista permitir a sua transposição do domínio puramente espiritual, o que conferia aos seus ensinamentos um valor simbólico e uma significação superior, e fazia dela um dos tipos mais completos das ‘ciências tradicionais’. O que deu origem à Química moderna não foi essa Alquimia, com a qual ela não tem, em suma, qualquer relação; foi antes uma deformação, um desvio no sentido mais rigoroso da palavra. Esse desvio se originou, talvez desde a Idade Média, da incompreensão de alguns que, incapazes de penetrar o verdadeiro sentido dos símbolos, tomaram tudo ao pé da letra e, julgando que se tratava de operações materiais, lançaram-se numa orientação mais ou menos desordenada. Foram esses, que os alquimistas qualificavam ironicamente de ‘separadores’ e de ‘queimadores de carvão’, os verdadeiros precursores dos químicos atuais; e é assim que a ciência moderna se edifica com os restos das ciências antigas, com os materiais rejeitados por estas e abandonados aos ignorantes e aos ‘profanos’. Acrescento ainda que os chamados renovadores da Alquimia, por seu lado, alguns dos quais se encontram entre os nossos contemporâneos, só prolongam esse mesmo desvio, e as suas pesquisas estão tão afastadas da alquimia tradicional como as dos astrólogos o estão da antiga Astrologia. É por esse motivo que tenho o direito de afirmar que as ‘ciências tradicionais’ do Ocidente se encontram realmente perdidas para os modernos”. (GUÉNON: 2007, pgs. 47 e 48)  

Tais informações nos permitem concluir tranquilamente que a modificação do entendimento do que, em última instância, viria a significar uma revolução em sentido estrito está intimamente conectada com as formas anômalas que sucederam as ciências tradicionais ao ponto de com elas se confundirem totalmente na atualidade. Nos deparamos aqui com um problema semiótico: com a questão de procurar abstrair significados diferentes de uma mesma expressão linguística.    

Portanto, quando ouvimos astrônomos contemporâneos cacarejarem ‘revolução dos astros’ com ares de quem redescobriu a pólvora, ainda que essa ideia se estribe em um locus de circularidade do movimento dos corpos celestes, não alcança a integridade da compreensão da antiga Astrologia, na medida em que os antigos não extraíam um “resultado” da observação empírica de uma sucessão de estados fenomênicos regidos pelo princípio da causalidade das ciências naturais, mas sentiam a derivação de estágios de consciência mais ou menos influenciados pela posição dos astros. Isso é o que a ciência moderna presunçosamente denomina “senso comum”, e é nesse contexto em que o charlatanismo foi alçado à condição de diretiva axiológica que se insere a maior parte dos quiproquós acerca do significado do agir revolucionário.

Em sua acepção mais pura, a revolução é algo diametralmente oposto à ideia de progresso cumulativo. Isso levou autores como Guillaume Faye, Alain de Benoist, Alain Soral e o próprio Alexandr Dugin a idealizarem o que se convencionou denominar “Revolução Conservadora”.

Com efeito, há uma série de valores, crenças, ritos e costumes tradicionalmente arraigados na estrutura da realidade que devem ser conservados sem que isso implique em inércia e conformismo imobilizante. A revolução seria, então uma cabeça de Janus, com uma das feições voltada para um passado que precisa ser resgatado e outra virada para o futuro que deverá ser construído em sincronia com esse resgate.

Se, por um lado, a revolução é um modo defensivo de se livrar dos velhos vícios que impregnaram os mais diversificados sistemas dogmáticos, por outro é um modo ofensivo de acrescentar novas virtudes ao repertório sócio-cultural daqueles que serão governados pelos membros do levante. Poderíamos dizer, em arremate, que a revolução é uma espécie de anamnese programada.

Eis o potencial criativo do móbil revolucionário!   

   

REFERÊNCIAS:


DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política. Editora Austral: Curitiba, 2012.

GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno. Clube do Tarô: São Paulo, 2007.

___.Grande Enciclopédia Barsa, vol. 12. Barsa Planeta Internacional: São Paulo: 2004.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional, vol. 1: Teoria do Estado e da Constituição. Del Rey: Belo Horizonte, 2013.


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