sábado, 27 de fevereiro de 2016

Revolução Nossa de Cada Dia

por: Gustavo Aguiar


Quando ouvimos falar em revolução, somos quase que imediatamente reconduzidos pelo nosso “mapa mental associativo” a pensar em uma mobilização política de média ou grande escala vocacionada para a ruptura total do status quo, ou, como diriam os constitucionalistas modernos: a obliteração do poder constituído em virtude do rechancelamento do poder constituinte originário. O primeiro a postular a distinção tipológica entre Constituições originárias e derivadas foi Karl Loewenstein (CARVALHO: 2013, p. 61)

A enciclopédia britânica conceitualiza uma revolução como sendo “(...) a ruptura com a organização política e social vigente, com as condutas aceitas como éticas ou com o modo tradicional de pensar, crer e agir. Paradoxalmente, o sentido atual da palavra é oposto ao de sua origem etimológica, o vocábulo medieval latino revolutio, que significa retorno ou volta. Termo científico de emprego usual em astronomia ou geometria, só a partir do século XVIII perdeu o sentido de processo cíclico contínuo, de fluxo e refluxo ou retorno a um estado anterior melhor ou mais puro. Modernamente, passou a ser aplicado ao domínio geral das atividades sociais, políticas, econômicas e culturais com o sentido de reviravolta ou mudança radical”. (Grande Enciclopédia Barsa, vol. 12: 2004, p. 326)   
  
Destarte, foram as revoluções burguesas que explodiram na Europa durante o século XVIII que imprimiram à palavra de ordem revolucionária um significado antitético à sua compreensão genealógica. Daí a sucessão de erros crassos de interpretação por parte de autoproclamados “agentes transformadores da realidade”.

Tais considerações adquirem uma importância extraordinária para o correto entendimento dos materialismos histórico e dialético balizadores da teoria marxista, porque é tão somente através delas que podemos perceber seus limites semânticos e operacionais desde a perspectiva da Tradição Primordial, segundo a qual não se rompe com um estado de coisas pretensamente vulgar ou abnorme senão com o intuito de resgatar um topos anterior à instituição daquilo que os contratualistas denominaram Pacto Social. Obviamente, esse espaço mental não se refere a nada comparável com imperativos de natureza política, social, moral ou antropológico, mas pura e simplesmente a comandos espirituais.

Toda revolução é mais um regresso ao nascedouro espiritual do que a supressão da ordem vigente lastreada na fé cega no progresso. Por isso, em um ambiente tecnocrático-industrial, um ato de revolta setorizado não pode significar mais que insurgência, conquanto extirpado o coeficiente beligerante de dita sublevação. Em termos mais simplificados: não há, e nem pode haver revolução (empregada aqui em acepção tradicional) num mundo governado pelo progresso linear, haja vista que o pressuposto de legitimidade da conduta revolucionária é a inalterabilidade das condições estáticas do status quo ante. Um fluxo que não dá azo ao refluxo é um movimento dessubstancializado, uma “cabeça sem cérebro”, em terminologia platônica.

Nesse diapasão, Alexandr Dugin pontifica, acertadamente que “a revolução não foi apenas sancionada pela modernidade, ela foi sua própria questão. O reconhecimento da insuficiência do homem, como um princípio antropológico ou ontológico, do mesmo modo, foi reconhecida e declarada como uma vantagem, como uma reconquista da identidade negativa dos contos pequeno-burgueses sobre a identidade positiva do homem. Desse modo, a modernidade chegou mesmo à sua própria exaustão e renasceu como pós-modernidade ao fim do século XX.  Desse modo, tudo que era empírico, adequado, e óbvio na modernidade, deixou de sê-lo na pós-modernidade. Mas se a revolução foi um ponto da modernidade, na pós-modernidade ela se torna impossível, na medida em que a própria modernidade se tornou impossível. Mais ainda, saindo da modernidade e entrando na pós-modernidade nós vamos além da possibilidade de revolução, a revolução passa a ser fatorada. Desse modo, a pós-modernidade não nega a modernidade diretamente. Ela não diz ‘não’ à modernidade e à revolução, mas ‘sim’ a seus simulacros.  Ela compreende bem, que de modo a prevenir a revolução, esta deve ser simulada. Assim, o sentido da pós-modernidade é uma permanente simulação da revolução”. (DUGIN: 2012, p. 205)

E é justamente pelo fato de a pós-modernidade – tendo assimilado caracteres específicos da modernidade - ser uma espécie de matriz pré-ontológica de simulacros de movimentos revolucionários que se torna dificultosa a tarefa de sepultá-la como paradigma sócio-político-antropológico-existencial. A era das revoluções propriamente dita cedeu espaço à era das pós-revoluções, onde já não se reconhece o poder criativo de uma organização pretensamente revolucionária; no máximo, o ímpeto recreativo dos quadros de tal organização. Há fluxo sem refluxo: projeção holográfica sem uma ideia que lhe dê suporte. Na prática, não se transforma a realidade a partir de um projeto pré-concebido; sua estrutura é “dobrada” como casinhas de cartolina na superfície de uma maquete de isopor para nos persuadirmos de que atuamos sobre uma conjuntura inteiramente nova, ao passo que o que fazemos é reproduzir velhos fetiches em uma plataforma essencialmente idêntica à que pretendemos superar.

Reflexo de tal impressão encontra-se nitidamente cristalizado no giro científico, que operou mudanças radicais na ideia central do que outrora era concebido como Alquimia e Astrologia, e que se desnaturaram na química e na astronomia, respectivamente.

Nos dizeres de René Guénon:

“O caso da Química é talvez ainda mais claro e característico; e a ignorância dos modernos a respeito da Alquimia é pelo menos tão grande como no que diz respeito à Astrologia. A verdadeira Alquimia era essencialmente uma ciência de ordem cosmológica e, ao mesmo tempo, era aplicável também à ordem humana, em virtude da analogia do “macrocosmos” e do “microcosmos”. Além disso, era construída expressamente tendo em vista permitir a sua transposição do domínio puramente espiritual, o que conferia aos seus ensinamentos um valor simbólico e uma significação superior, e fazia dela um dos tipos mais completos das ‘ciências tradicionais’. O que deu origem à Química moderna não foi essa Alquimia, com a qual ela não tem, em suma, qualquer relação; foi antes uma deformação, um desvio no sentido mais rigoroso da palavra. Esse desvio se originou, talvez desde a Idade Média, da incompreensão de alguns que, incapazes de penetrar o verdadeiro sentido dos símbolos, tomaram tudo ao pé da letra e, julgando que se tratava de operações materiais, lançaram-se numa orientação mais ou menos desordenada. Foram esses, que os alquimistas qualificavam ironicamente de ‘separadores’ e de ‘queimadores de carvão’, os verdadeiros precursores dos químicos atuais; e é assim que a ciência moderna se edifica com os restos das ciências antigas, com os materiais rejeitados por estas e abandonados aos ignorantes e aos ‘profanos’. Acrescento ainda que os chamados renovadores da Alquimia, por seu lado, alguns dos quais se encontram entre os nossos contemporâneos, só prolongam esse mesmo desvio, e as suas pesquisas estão tão afastadas da alquimia tradicional como as dos astrólogos o estão da antiga Astrologia. É por esse motivo que tenho o direito de afirmar que as ‘ciências tradicionais’ do Ocidente se encontram realmente perdidas para os modernos”. (GUÉNON: 2007, pgs. 47 e 48)  

Tais informações nos permitem concluir tranquilamente que a modificação do entendimento do que, em última instância, viria a significar uma revolução em sentido estrito está intimamente conectada com as formas anômalas que sucederam as ciências tradicionais ao ponto de com elas se confundirem totalmente na atualidade. Nos deparamos aqui com um problema semiótico: com a questão de procurar abstrair significados diferentes de uma mesma expressão linguística.    

Portanto, quando ouvimos astrônomos contemporâneos cacarejarem ‘revolução dos astros’ com ares de quem redescobriu a pólvora, ainda que essa ideia se estribe em um locus de circularidade do movimento dos corpos celestes, não alcança a integridade da compreensão da antiga Astrologia, na medida em que os antigos não extraíam um “resultado” da observação empírica de uma sucessão de estados fenomênicos regidos pelo princípio da causalidade das ciências naturais, mas sentiam a derivação de estágios de consciência mais ou menos influenciados pela posição dos astros. Isso é o que a ciência moderna presunçosamente denomina “senso comum”, e é nesse contexto em que o charlatanismo foi alçado à condição de diretiva axiológica que se insere a maior parte dos quiproquós acerca do significado do agir revolucionário.

Em sua acepção mais pura, a revolução é algo diametralmente oposto à ideia de progresso cumulativo. Isso levou autores como Guillaume Faye, Alain de Benoist, Alain Soral e o próprio Alexandr Dugin a idealizarem o que se convencionou denominar “Revolução Conservadora”.

Com efeito, há uma série de valores, crenças, ritos e costumes tradicionalmente arraigados na estrutura da realidade que devem ser conservados sem que isso implique em inércia e conformismo imobilizante. A revolução seria, então uma cabeça de Janus, com uma das feições voltada para um passado que precisa ser resgatado e outra virada para o futuro que deverá ser construído em sincronia com esse resgate.

Se, por um lado, a revolução é um modo defensivo de se livrar dos velhos vícios que impregnaram os mais diversificados sistemas dogmáticos, por outro é um modo ofensivo de acrescentar novas virtudes ao repertório sócio-cultural daqueles que serão governados pelos membros do levante. Poderíamos dizer, em arremate, que a revolução é uma espécie de anamnese programada.

Eis o potencial criativo do móbil revolucionário!   

   

REFERÊNCIAS:


DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política. Editora Austral: Curitiba, 2012.

GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno. Clube do Tarô: São Paulo, 2007.

___.Grande Enciclopédia Barsa, vol. 12. Barsa Planeta Internacional: São Paulo: 2004.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional, vol. 1: Teoria do Estado e da Constituição. Del Rey: Belo Horizonte, 2013.


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O Tao Te King e a Dialética do Absurdo

por: Gustavo Aguiar

“Para ganhar conhecimento, adicione coisas todos os dias. Para ganhar sabedoria, elimine coisas todos os dias”. – Lao Tsé

Traçar um paralelo de diferenças entre as obras de Albert Camus e Lao Tsé seria uma tarefa demasiado enfadonha para qualquer um que tenha mergulhado em seus escritos ao ponto de deles extrair algo de verdadeiramente enriquecedor.  Nem é este o nosso desiderato, pelo que nos limitaremos a abordar aqui, da forma mais clara e sucinta possível – afinal “o excesso de palavras leva ao esgotamento” - um ponto específico no qual ambos os pensamentos convergem de maneira quase inextricável: a dialética do absurdo, em cuja antinomia o espírito nostálgico do homem se vê divorciado do mundo circundante, tornando-se “um estrangeiro de si mesmo” e o não fazer (wu wei) da gnosis taoísta como o modo através do qual o Verbo (Tao) se comunica conosco em silêncio tumular, é dizer, sem pronunciar sequer uma única sílaba.

No sexto aforisma do Tao Te King, Lao Tsé nos revela¹ que “quando todos sob o céu afirmam que o belo é belo, o feio se manifesta. Quando todos pensam saber tão bem o que é bom, o mau se manifesta”.  Rijckenborgh e Petri traduzem bem a profundidade dessas palavras ao assinalarem que, na referida passagem, Lao Tsé não fez menos do que anunciar o papel do sábio diante da ordem dialética do microcosmo, fundamentada quase que totalmente em contradições, de que belo e feio, bem e mal constituem apenas os exemplos mais recorrentes.

Não outro é o significado que Albert Camus, ao tratar do suicídio filosófico como uma questão de tudo ou nada², imprime à dialética do absurdo, composta essencialmente por antinomias:

“O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Isto é o que não devemos esquecer. A isto é que devemos nos apegar, porque toda a consequência de uma vida pode nascer daí. O irracional, a nostalgia humana e o absurdo que surge de seu encontro, eis os três personagens do drama que deve necessariamente acabar com toda a lógica de que uma existência é capaz”. (CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, p. 39)

Nesse sentido, o feio existe para lembrar ao belo que este último não passa de uma ilusão, um simulacro imposto à percepção sensorial que deflui de uma espécie de distorção egoística do átomo primevo. O mesmo ocorre com o mal, cujo sentido é restituir ao bem sua insignificância originária, anterior à moldura estética em que habitualmente o enxergamos. Em termos mais simplificados: trata-se de nos libertarmos dos grilhões que nos mantém presos à condição humana e atingir um estado de ócio contemplativo que nos permita acessar a beleza edênica da eternidade com o coração, em vez de com o nervo óptico.

O esplendor da beleza do Tao possui uma dimensão que não pode ser verbalizada ou transmitida por vias discursivas a um interlocutor sedento de seus ensinamentos.

Ele é a irradiação vivente e magnética que une a totalidade das consciências despertas na onimanifestação do macrocosmo. Por isso, a lei da sabedoria prescreve àqueles que pretendem decifrar o Tao o método do não fazer. Este, por sua vez não é, como poderíamos imaginar, uma atitude negativa em face das vicissitudes mundanas, mas “uma alegria calma e silenciosa; prossegui nessa calma alegria silenciosa, em total autorrendição ao átomo original, o Reino em vós. Isso é ‘adotar o não fazer’. Isso é compreender o ensinamento sem palavras. ‘Não sou eu que devo crescer, mas Ele, o Outro, que é maior do que eu. Eu devo diminuir, eu devo desaparecer nesse Outro, o ser oculto no átomo original’” (RIJCKENBORGH, J. van; PETRI, Catharose de. A Gnosis Chinesa: comentários sobre o Tao Te King de Lao Tsé, p. 40)

O Tao nos fornece as ferramentas de que necessitamos para, em contrita resignação, buscarmos sincronizar³ a circularidade absurda da dialética que rege a esfera deste mundo - em que o amor não pode remeter a nada que não seja ao ódio, e a beleza, a nada que não seja à feiura - com a ascese espiralada do supra-mundo, onde não há circunlóquio de manifestações ou remissões circulares de antíteses conceituais, mas tão somente a subida de degraus que nunca tornam a se repetir na senda que nos conduzirá, ainda que em questão de milênios, de éons, ao espírito do vale, ao Reino de Shamballah:

“Vede o caminho – Tao

Segui o caminho – Te

Compeendei o caminho – King”.


NOTAS:

¹ Emprego o vocábulo revelação em acepção gnóstica do ouvir o chamado do Deus em nós.

² Para Camus, ou o ser aceita a realidade absurda em que ele vive ou renuncia sua existência por meio do suicídio. Tertium non datur.

³  O Tao não promete a experiência transcendental do espírito como faz um sem número de escolas ocultistas, não raro oriundas de seitas new age, mas tão somente o auto-equilíbrio que nos permite conhecer em vida um pouco do caminho que só começaremos a trilhar efetivamente após a morte.

REFERÊNCIAS:

RIJCKENBORGH, J. van; PETRI, Catharose de. A Gnosis Chinesa: comentários sobre o Tao Te King de Lao Tsé. Lectorium Rosicrucianum: São Paulo, 2010.


CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. BestBolso,: Rio de Janeiro, 2010. 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

O Materialismo Real segundo René Guénon

por: Gustavo Aguiar


No curso de um estágio tão avançado do Kali-Yuga em que nos encontramos imersos, urge tecer algumas breves elucubrações pertinentes aos devaneios suscitados pelo agigantamento daquilo que René Guénon perspicazmente denominou “materialismo real” para indicar o desnível entre o eixo pragmático-utilitário das ciências profanas e o seu correspondente teórico-filosófico no plano especulativo.

Se, por um lado, o preclaro mestre considera a filosofia como uma espécie de vulgarização da já há muito combalida espiritualidade ocidental – vide Crise do Mundo Moderno -, por outro, esse processo “catagógico” de dispersão na multiplicidade pura que se operou no âmbito do pensamento filosófico nem se compara ao seu equivalente racionalista/cientificista, conquanto permaneça, ao contrário deste último, indiferente à realidade enquanto circunvisão autônoma, ainda que venha, ocasionalmente, e de maneira muito tímida, a exaltá-la.

Quando a marginalização ordinária dos ritos de transcendência espiritual se torna consectário lógico da auto-ilusão materialista, a “realidade” – empregada aqui em acepção fenomênica subjetiva daquilo que se nos apresenta imediatamente aos sentidos – termina por alhear-se completamente à esfera objetiva do espírito universal. Poderíamos evocar, à guiza de esclarecimento, a clássica definição trifásica do pensamento ocidental (teologia – metafísica – ciência positiva) de Auguste Comte, sem, no entanto, olvidar que essa formulação já se insere na órbita de um contexto esotericamente decadente, é dizer: alijado de qualquer acuidade espiritual.

Vejamos, então, como Guénon situa o “materialismo real” a partir da transição do pensamento filosófico para a deambulação cientificista da era moderna:

“O próprio mecanicismo e o materialismo só puderam adquirir uma influência generalizada ao passar do domínio filosófico ao científico; o que diz respeito a este último, ou aquilo que se apresenta com ou sem razão como revestido deste carácter «científico», tem seguramente, por razões diversas, muito mais acção do que as teorias filosóficas sobre a mentalidade vulgar, na qual há sempre uma crença pelo menos implícita na verdade de uma «ciência», cujo carácter hipotético lhe escapa inevitavelmente, enquanto que tudo o que se qualifica de «filosofia» deixa essa mentalidade vulgar mais ou menos indiferente; a existência de aplicações práticas e utilitárias num caso, e a sua ausência, no outro, não é totalmente alheia a isso. Este facto leva-nos mais uma vez à idéia da «vida vulgar», na qual entra efectivamente uma boa dose de «pragmatismo»; e o que dizemos é ainda, claro, totalmente independente do facto de alguns dos nossos contemporâneos quererem erigir o «pragmatismo» a sistema filosófico, o que só foi possível devido exactamente ao cariz utilitário que é inerente à mentalidade moderna e profana em geral, e também porque, no estado actual de decadência intelectual, se chegou a perder completamente de vista a própria noção de verdade, de tal modo que a de utilidade ou de comodidade acabou por substitui-la totalmente”. [1]


[1] GUÉNON, René. A Ilusão da Vida Vulgar, disponível em: http://wearetime.blogspot.com.br/2015/10/a-ilusao-da-vida-vulgar-por-rene-guenon.html

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Da Contraposição Amigo-Inimigo no Decisionismo Político de Carl Schmitt

por: Gustavo Aguiar




“’Tu, que no val feliz, aonde as graças
E as palmas Cipião colheu da glória,
Quando Aníbal vexavam só desgraças,
‘Mil leões apressaste por memória;
Que, aos irmãos se ajudaras na alta guerra,
Se crê triunfo registrasse a história
‘Dos fortes filhos da fecunda. Terra!”


- Dante Alighieri (Incipit Commedia. Dantis Alogherii Florentini Natione, Non Moribus)  

    
Um ensaio razoavelmente aceitável envolvendo qualquer problemática levantada por aquele que é considerado o maior expoente da ciência jurídica do século XX traz, como pressuposto de admissibilidade teórico-prático, certo rigor sistemático, e, mais ainda, a capacidade de mobilizar ou funcionalizar conceitos estáticos no marco de uma constitucionalidade paradigmaticamente delimitada. Isso porque obras como Der Hüter der Verfassung (O Guardião da Constituição), Der Begriff des Politischen (O Conceito do Político), Politische Theologie (Teologia Política) e Der Nomos der Erde im Volkerrecht des Jus Publicum Europaeum (O Nomos da Terra no Direito das Gentes do jus publicum europaeum) consagraram Carl Schmitt como um divisor de águas da literatura jurídico-científica tanto intra-estatal como inter-estatal. Em suma, é possível não gostar de Carl Schmitt, mas é impossível, ou, pelo menos, altamente não-recomendável, se abster de conhecê-lo.

No presente estudo, abordaremos a contraposição amigo-inimigo, que perpassa transversalmente todo o pensamento do autor como fundamento existencial de legitimidade para toda e qualquer questão regida normativamente pelo jus bellum na seara do Direito Internacional Público, cujo sujeito imediato é o conjunto de unidades territoriais soberanamente instituídas, ou, noutros termos, os Estados soberanos, detentores do jus ad bellum, é dizer, do direito de declarar guerra a terceiros toda vez que algum aspecto inerente à soberania titularizada pelo Chefe de Estado for posta em xeque. Questões como guerra civil e disputas político-partidárias não serão tratadas aqui por pertencerem à alçada do direito intra-estatal, pelo que nos limitaremos a abstrair da clássica formulação geral do decisionismo schmitteano (“soberano é quem decide sobre o estado de exceção”) alguns macetes que muito nos servirão ao propósito da elaboração de uma desconstrução sistemática do paradigma do Estado neutral de cariz liberal, que parece voltar a emergir na atual conjuntura estrutural, sobretudo em seara política e geopolítica.  
  
Em Der Begriff des Politischen, publicado em 1932, Carl Schmitt, como de costume, começa expondo as razões que o motivaram a pensar a política como uma pré-ordenação universal relativamente a categorias aparentemente desencadeadoras de toda sorte de antagonismos, como, v.g. a moral (bom e mal), o direito (justo e injusto) e a economia (lucrativo e não-lucrativo). Para tanto, esboça um conceito de Estado que pretende superar a dicotomia tipologicamente liberal entre Estado e sociedade civil, postulando que “o conceito de Estado pressupõe o conceito do político. Estado é, segundo o uso da linguagem hodierna, o status político de um povo organizado numa unidade territorial” (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, p. 41).

Com isso, começamos a entender que a política antecede as questões de Estado, na medida em que estas últimas só aparecem como possibilidades reais ou concretas de uma ordenação politicamente estabelecida. Nesse sentido, a pretensão de neutralidade política, jurídica, econômica ou religiosa típica de uma Weltanschauung demo-liberal é reduzida a um artifício retórico destituído de qualquer consistência argumentativa, posto que, em última instância, todos os conflitos estão radicados na política, e a política não é neutra, em absoluto, conquanto dependa de resultados favoráveis a um lado ou outro para ser efetivamente implementada. É, inclusive, ancorado em tal raciocínio que Schmitt declarará, mais adiante, o constitucionalismo liberal como uma concepção jurídica essencialmente despolitizada, alheia a discussões políticas, lacuna que, segundo o autor, incumbiria ao paradigma do Estado total, “que não conhece nada que seja absolutamente apolítico”, colmatar, arrastando a política para setores estatalmente disfuncionais, o que não significa, no entanto, que todos os setores devem ser politizados, mas que a política funciona como garante dos direitos mais elementares até mesmo em esferas em que não lhe compete intervir diretamente.

Para Schmitt, a contraposição amigo-inimigo só pode ser corretamente assimilada a partir da política concebida como conceito autônomo, topograficamente localizado no interregnum entre as categorias moral, jurídica, econômica, etc. e a ficção da neutralidade, o que não significa que ela não se encontra imbricada com questões éticas, eclesiásticas ou sócio-ideológicas. A tese central do autor é que o político, enquanto ubiquidade, não deriva de fatores remotamente estabelecidos a partir de um encadeamento causal-naturalístico, como querem os jusnaturalistas, tampouco pode ser deduzido de critérios de estrita legalidade balizadores do pensamento juspositivista. A política sequer é uma esfera específica do Estado, a teor do que proclamam equivocadamente os administrativistas. O político se erige em condição legítima de possibilidade da caracterização de um inimigo público, na medida em que “o inimigo não é, portanto, o concorrente ou o opositor em geral. O inimigo também não é o opositor privado que se odeia com sentimentos de antipatia. O inimigo é, apenas, uma totalidade de homens pelo menos eventualmente combatente, isto é, combatente segundo uma possibilidade real, a qual se contrapõe a uma totalidade semelhante. O inimigo é apenas o inimigo público, pois tudo aquilo que tem relação com uma tal totalidade de homens, em particular, com todo um povo, se torna por isso público. O inimigo é hostis, não inimicus em sentido mais amplo”, (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 55 e 56)   

Em Der Nomos der Erde im Volkerrecht des Jus Publicum Europaeum, nos deparamos com uma investigação extremamente pormenorizada acerca do conflito entre terra firme e mar livre no contexto de diferentes ordenações espaciais, dentre as quais se destaca o Direito das Gentes inter-estatal europeu pela abolição do instituto medieval da iusta causa belli, que considerava “justos” e, portanto, legítimos a desbravar e titularizar oficialmente as terras colonizadas somente os membros da Ordo cristã medieval em detrimento dos não-cristãos, que, por sua vez, não eram contemplados pela aquisição originária do solo. Para Francisco de Vitória, criador do conceito de Guerra Justa, o “inimigo” era sinônimo de criminoso, e tão somente membros da Igreja possuíam legitimidade ativa para declarar guerra. Citando Hugo Grotius, Carl Schmitt aduz que “desde Grotius que é em geral reconhecido que a justiça não pertence ao conceito da guerra. As construções que exigem uma guerra justa servem habitualmente, elas mesmas, um fim político. Requerer de um povo politicamente uno que só faça guerra a partir de um fundamento justo ou é algo inteiramente óbvio, se isso quiser dizer que só se deve fazer guerra contra um inimigo real; ou esconde-se atrás disso o propósito político de depositar em outras mãos a disposição sobre o jus belli e de encontrar normas de justiça sobre cujo conteúdo e aplicação no caso singular não é o próprio Estado que decide, mas um qualquer outro terceiro que, desta maneira, determina quem é o inimigo”. (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 90 e 91)

A superação dos direitos eclesiástico e estamental realizada nos séculos XVI e XVII por juristas humanistas como Alberico Gentili, um dos precursores do Direito Internacional Moderno, foi o marco da institucionalização do Direito de Guerra, cuja compreensão viria a culminar no jus publicum europaeum, de acordo com o qual todo e qualquer Estado soberano não só detém a faculdade do jus ad bellum como deve ser considerado como um igual perante os demais Estados soberanos que em face dele disputam determinado território ou causa de que a guerra é objeto, figurando como portador legítimo do status de justus hostis. O inimigo deixa de ser juridicamente recriminado em prol da exigibilidade de uma postura inter-estatal equitativa ou igualitária, e a própria guerra civil cede espaço à guerra estatal. “A guerra se converte, pois, em ‘uma guerra em forma’ pelo mero fato de que se transforma em guerra entre Estados europeus claramente delimitados enquanto ao espaço, em uma disputa entre as entidades espaciais imaginadas como personae publicae que compõem sobre o solo europeu comum a ‘família’ europeia, e que têm assim a possibilidade de considerarem-se reciprocamente como iuste hostes” – tradução livre do espanhol. (SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra En el Derecho de Gentes del “Jus publicum europaeum", p. 135) Em Gentili, o Direito das Gentes é desteologizado, e, no lugar da Igreja Cristã, o Estado secular reivindica para si o monopólio da determinação paradigmática de amigo-inimigo, o que se expressa com clareza meridiana no famigerado brocardo: Silete theologi in munere alieno.  É nesse sentido que Schmitt obtempera que o inimigo deve ser compreendido, em essência, como hostis, e jamais como inimicus, haja vista que, para os escopos do jus gentium, a figura do inimigo há de coincidir necessariamente com a figura do estrangeiro ou representante político de um grupamento territorial político-paradigmaticamente estruturado.

Interessante analogia, realizada por Carl Schmitt em Politische Theologie, serve ao escopo de elucidar a transição da Idade Média cristã de matriz teológico-metafísica para o paradigma do Estado de Direito Moderno. Tal consiste em identificar o instituto do milagre característico da cristandade medieval com o estado de exceção. É precisamente aqui que, segundo Schmitt, reside a chave para a compreensão da evolução do pensamento político-filosófico, nos seguintes termos: “todos os conceitos centrais da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados. Isso é certo não só em razão de sua evolução histórica, enquanto foram transferidos da teologia à teoria do Estado, convertendo-se, por exemplo, o Deus onipotente no legislador todo-poderoso, mas também em razão de sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é imprescindível para a consideração sociológica desses conceitos. O estado de exceção tem na jurisprudência significação análoga ao milagre da teologia. Só tendo consciência dessa analogia é possível conhecer a evolução das ideias filosófico-políticas nos últimos séculos. Porque a ideia do moderno Estado de Direito a par do deísmo, com uma teologia e uma metafísica que baniram do mundo o milagre e não admitem a violação com caráter excepcional das leis naturais implícita no conceito do milagre é produzido por intervenção direta do soberano no ordenamento jurídico vigente. O racionalismo da época do Iluminismo não admite o caso excepcional em nenhuma de suas formas. Por isso a convicção teísta dos escritores conservadores da contrarrevolução puderam fazer o ensaio de fortalecer ideologicamente a soberania pessoal do monarca com analogias retiradas da teologia teísta” –tradução livre do espanhol (SCHMITT, Carl. Teología Política, vol. 2, p. 37)  
          
Dessarte, em Schmitt, é ao titular do poder soberano, e não mais à Igreja Medieval, que compete decidir em última instância a respeito do estado de exceção, é dizer, acerca da suspensão da vigência das instituições jurídicas durante o período de guerra. Também é ele, como representante popular por excelência, o Guardião da Constituição, ao contrário do que assinala o normativismo kelseneano, que, a seu turno, atribui à Corte Constitucional, órgão de cúpula da República de Weimar, legitimidade para realizar o controle de constitucionalidade concentrado, um dos principais corolários da tese sufragada em Jurisdição Constitucional.

Embora historicamente o normativismo tenha logrado maior êxito do que o decisionismo em matéria fática, a contribuição decisionista se revela mais defensável, sobretudo internacionalmente, por dar maior ênfase à soberania estatal em tempos em que esta última se torna alvo de um processo de relativização inclinado ao atendimento de interesses globalistas presididos hegemonicamente por superpotências transnacionais. De qualquer sorte, importa aqui perceber que, diferentemente do direito medieval, o direito moderno confere ao inimigo um caráter heurístico, eliminando a possibilidade de este ser reconhecido privadamente. Isto porque um inimigo é obrigatoriamente um inimigo do todo de um grupamento territorial, e não de um indivíduo atomizado, destacado do tecido da realidade jurídico-política de uma comunidade espacialmente delimitada.

Distintamente de Hans Kelsen, por um lado, cujo intento de construir uma ciência do direito que pudesse ser considerada neutra talqualmente a matemática e a biologia, obliterando quaisquer resíduos moral, político e religioso, é dizer, rompendo com o “sincretismo metodológico” e, de conseguinte, com a possibilidade de se deduzir o ser do dever ser – ver A Teoria Pura do Direito -, e Jürgen Habermas, por outro, que atribui ao procedimento de tomada de decisões coletivas, ou, mais especificamente, ao princípio da maioria, um caráter neutro, supostamente hábil a garantir, a um só tempo, o exercício das autonomias pública e privada pelos co-legisladores (cidadãos detentores do status de membros de uma comunidade jurídica simultaneamente autores e destinatários das normas que eles se dão a si mesmos) de modo que o direito das minorias não seja violado – ver Direito e Democracia: Entre Faticidade e Validade e A Inclusão do Outro -, Carl Schmitt não se deixa iludir pela quimera da neutralidade. A Kelsen podemos objetar, com lastro no decisionismo schmitteano, que é a política enquanto possibilidade concreta de desencadeamento de litigiosidades, e não uma “norma hipotética fundamental” (Grundnorm) imaginária,  que justifica e mobiliza, atual e potencialmente, um ordenamento jurídico. Qualquer questão é, primariamente, uma questão política, e apenas secundariamente uma questão jurídica, social ou religiosa. Da mesma monta, a guerra só pode ser adequadamente compreendida como possibilidade de determinação do inimigo real, motivo pelo qual há de ser deflagrada por razões de natureza política que só mais tarde passará a submeter as potências beligerantes ao crivo do jus belli e eventualmente encerradas mediante Tratado de Paz. Podemos extrair do seguinte escólio uma clara demonstração de como o político passa não só a habitar o centro magnético de questões morais, religiosas, econômicas, etc., como também a determinar em caráter decisivo todas as questões envolvendo qualquer uma dessas categorias:

“Cada contraposição religiosa, moral, económica, étnica ou outra transforma-se numa contraposição política quando é suficientemente forte para agrupar efectivamente os homens segundo amigo e inimigo. O político não está no combate ele mesmo, o qual, por seu lado, tem as suas próprias leis técnicas, psicológicas e militares, mas, como se disse, numa relação determinada por esta possibilidade real, no claro reconhecimento da situação própria, determinada por ela, e na tarefa de diferenciar correctamente amigo e inimigo. Uma comunidade religiosa que, enquanto tal, faz guerras, seja contra os membros de outras comunidades religiosas, seja outro tipo de guerras, é, para além de comunidade religiosa, uma unidade política (...) O mesmo vale para uma associação de homens que repouse numa base económica, por exemplo, para um grupo industrial ou para um sindicato. Também uma ‘classe’, no sentido marxista do termo, deixa de ser algo puramente económico e se torna numa grandeza política quando alcança este ponto decisivo, isto é, quando leva a sério a ‘luta’ de classes, quando trata o opositor de classe como inimigo real e o combate, seja como Estado contra Estado, seja numa guerra civil no interior de um Estado. O combate real já não se joga então, de um modo necessário, de acordo com leis económicas, mas tem – juntamente com os métodos de combate em sentido mais estrito – as suas necessidades políticas, e orientações, coligações, compromissos, etc. Se, no interior de um estado, o proletariado se apoderar do poder político, então terá surgido precisamente um Estado proletário que não é menos uma formação política do que um Estado nacional, um Estado sacerdotal, um Estado comercial ou um Estado de soldados, um Estado de funcionários ou qualquer outra categoria de unidade política. Se toda a humanidade chegar a agrupar-se como amigo e inimigo em Estados proletários e capitalistas, segundo a contraposição entre proletários e burgueses, e se nisso desaparecerem todos os outros agrupamentos amigo-inimigo, mostra-se então toda a realidade do político mantida por estes conceitos que, à partida, aparentam ser ‘puramente’ económicos. Se a força política de uma classe ou de outros grupos dentro de um povo for apenas até ao ponto de poder impedir qualquer guerra que seja feita em relação ao exterior, sem ela mesma ter a capacidade ou a vontade de assumir o poder estatal de diferenciar, a partir de si, amigo e inimigo e de, caso seja preciso, fazer guerra, então a unidade política está destruída”. (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 69 á 71)

Impossível deixar de notar que na concepção schmitteana, os conceitos de “guerra”, “soberania” e “amigo-inimigo” são entremeados e coordenados pelo conceito do político, que, dotado de um caráter universal, articula a partir do vértice todas as mobilizações internas e externas à unidade política, dentro da qual se revela como eventualidade real. Daí a plausibilidade da tese que confere ao Chefe de Estado, titular da soberania política, determinar, em nome da coletividade por ele representada, quem é o inimigo a ser combatido, de modo que qualquer tentativa no sentido de dissociar a política da moralidade, religiosidade ou qualquer outra categoria da vida ativa, sobeja paradigmaticamente desnaturada. Especificamente no final da passagem retro-transcrita, percebemos que uma determinada unidade política só estará sepultada em definitivo quando a guerra e, de conseguinte, a possibilidade de contrapôr amigo e inimigo já não for mais factível no marco de uma inter-estatalidade utópica que supere em peso a mera pretensão de uma humanização do Direito Internacional Público. Isso porque “um povo politicamente existente não pode, portanto, renunciar a diferenciar amigo e inimigo, num caso dado, através de uma determinação própria e por sua própria conta e risco” (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, p. 92)      

Não obstante o esforço despendido por Immanuel Kant no sentido de postular, no século XVIII, antes mesmo da criação da praticamente natimorta Liga das Nações, uma concepção filosófica da Paz Perpétua na qual pudesse basear a expectativa de criação de uma federação de Estados soberanamente instituídos (foedus pacificum) atados por um liame de moralidade – é dizer, independentemente de quaisquer instituições jurídicas capazes de fazerem valer as consequências do ilícito internacional -, enfrentamos hoje, com a Organização das Nações Unidas, problemas nucleares que transformam o ato de pensar um mundo sem guerra em fruto de especulações pouco aproveitáveis desde uma perspectiva teórico-prática. Consoante sentencia acertadamente Carl Schmitt, Kant era filósofo, e não jurista. Seu idealismo possui valor contemplativo, mas nada comparável ao realismo schmitteano em matéria de solução de conflitos. Juridicamente, a Paz Perpétua kantinana merece tanta credibilidade quanto a Utopia de Thomas Morus, na medida em que acredita poder subsumir a totalidade das questões políticas à formulação geral do imperativo categórico, que, transplantada para o âmbito do Direito Internacional Público, significa que a máxima orientadora da conduta de um Estado determinado deve ser compatível com as máximas norteadoras das condutas da universalidade dos demais Estados soberanos, ou, nas palavras do autor, “age de tal modo que possas querer que a tua máxima se torne uma lei universal (seja qual for o fim que ele queira)” (KANT, Immanuel. A Paz Perpétua: um Projeto Filosófico, p. 41), tentativa inócua de justificar moralmente e não politicamente as relações inter-estatais. A inexequibilidade de tal postulado reveste-se daquele tipo de auto-evidência que dispensa maiores comentários.     

Outra distinção importante para a delimitação conceitual de uma unidade político-paradigmática cujo representante soberano titulariza o direito de declaração de hostis, seja pela inobservância do conteúdo de um tratado internacional, seja pela violação escancarada de sua soberania política por terceiros, concerne a uma confusão introduzida pelo pluralismo anglo-saxônico no âmbito da Teoria do Estado, de acordo com o qual o que enseja o agrupamento de indivíduos em um corpo social unificado não é um único, mas vários fatores confluentes: política, religião, moral, sociedade (entendida aqui em acepção estritamente liberal-individualista), cultura, etc. Tal concepção descentralizante obstaculiza a apreensão existencial-paradigmática do conceito do político na medida em que deposita a ratio essendi do agrupamento em uma pretensa “associação” (governamental association) de indivíduos livres, e não em uma unidade política no sentido forte, paradigmático. Schmitt contrapõe a essa assertiva a tese de que, não por acaso, ela tende a degradar naquela espécie de federalismo societário que vê na máquina estatal um mero instrumento a serviço da satisfação de necessidades individuais. Para Schmitt, “(...) não há nenhuma ‘sociedade’ ou ‘associação’ política, há apenas uma unidade política, uma ‘comunidade’ política. A possibilidade real do agrupamento de amigo e inimigo é suficiente para criar, para além daquilo que é meramente associativo-societal, uma unidade paradigmática, a qual é algo especificamente diferente e algo decisivo em relação às restantes associações. Se esta unidade, mesmo numa eventualidade, faltar, falta também o próprio político”. (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 82 e 83) 
  
Releva acrescentar, a título de conclusão, que, embora academicamente vilipendiado e sub-valorizado, o decisionismo de Carl Schmitt permanece mais atual do que jamais logrou ser numa época em que a política é vista, não como ubiquidade fundante a penetrar o cerne de questões publicamente debatidas, mas como um conceito puramente pragmático de justificabilidade do individualismo liberal, no seio do qual manobras abstratas prevalecem sobre a possibilidade real de contraposição de amigo e inimigo a partir de critérios estritamente político-paradigmáticos. Não obstante a insistência por parte de setores específicos da sociedade civil em camuflar a necessidade de uma definição de amigo e inimigo, é imprescindível admiti-la, ainda que para fins de ressoberanização de Estados que vêm perdendo sua influência decisória na comunidade internacional hodierna. Tal contraposição só pode ser efetuada se se considera os grupamentos sociais como unidades políticas soberanas territorialmente delimitadas que não podem nem devem se furtar de defender seus interesses através das armas, hipótese em que serão consideradas reciprocamente como justus hostis pelo Direito de Guerra inter-estatal.  Sobeja, outrossim, infundado pretender separar as categorias moral, jurídica, cultural, religiosa, etc. de seu substrato político, haja vista que, conforme examinado alhures, onde há combate de qualquer natureza, há política, e somente a política pode servir, em última instância, como garante dos direitos fundamentais, ao contrário do que sustentam Kelsen e Habermas, por um lado, enfatizando a neutralidade, e Kant por outro, enfatizando a moralidade.   


REFERÊNCIAS:


SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Edições 70: Lisboa, 2015.

SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra En el Derecho de Gentes del “Jus publicum europaeum”. Editorial Struhart y Cía: Buenos Aires.

SCHMITT, Carl. Teología Política, vol. 2. Editorial Trotta: Madrid, 2009.

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua: um Projeto Filosófico. Lusofia: Covilhã, 2008.