por: Gustavo Aguiar
No curso de um estágio tão avançado do Kali-Yuga em que nos
encontramos imersos, urge tecer algumas breves elucubrações pertinentes aos
devaneios suscitados pelo agigantamento daquilo que René Guénon perspicazmente denominou
“materialismo real” para indicar o desnível entre o eixo pragmático-utilitário das ciências profanas e o seu correspondente teórico-filosófico no plano especulativo.
Se, por um lado, o preclaro mestre considera a filosofia
como uma espécie de vulgarização da já há muito combalida espiritualidade ocidental – vide Crise do
Mundo Moderno -, por outro, esse processo “catagógico” de dispersão na
multiplicidade pura que se operou no âmbito do pensamento filosófico nem se
compara ao seu equivalente racionalista/cientificista, conquanto permaneça, ao contrário deste último, indiferente à realidade enquanto circunvisão autônoma, ainda que venha, ocasionalmente, e de maneira muito tímida, a exaltá-la.
Quando a marginalização ordinária dos ritos de transcendência
espiritual se torna consectário lógico da auto-ilusão materialista, a “realidade”
– empregada aqui em acepção fenomênica subjetiva daquilo que se nos apresenta
imediatamente aos sentidos – termina por alhear-se completamente à esfera
objetiva do espírito universal. Poderíamos evocar, à guiza de esclarecimento, a clássica
definição trifásica do pensamento ocidental (teologia – metafísica – ciência positiva) de
Auguste Comte, sem, no entanto, olvidar que essa formulação já se insere na órbita de um contexto esotericamente decadente, é dizer: alijado de qualquer acuidade espiritual.
Vejamos, então, como Guénon situa o “materialismo real” a
partir da transição do pensamento filosófico para a deambulação cientificista
da era moderna:
“O próprio mecanicismo e o materialismo só puderam
adquirir uma influência generalizada ao passar do domínio filosófico ao
científico; o que diz respeito a este último, ou aquilo que se apresenta com ou
sem razão como revestido deste carácter «científico», tem seguramente, por
razões diversas, muito mais acção do que as teorias filosóficas sobre a
mentalidade vulgar, na qual há sempre uma crença pelo menos implícita na
verdade de uma «ciência», cujo carácter hipotético lhe escapa inevitavelmente,
enquanto que tudo o que se qualifica de «filosofia» deixa essa mentalidade
vulgar mais ou menos indiferente; a existência de aplicações práticas e
utilitárias num caso, e a sua ausência, no outro, não é totalmente alheia a
isso. Este facto leva-nos mais uma vez à idéia da «vida vulgar», na qual entra
efectivamente uma boa dose de «pragmatismo»; e o que dizemos é ainda, claro,
totalmente independente do facto de alguns dos nossos contemporâneos quererem
erigir o «pragmatismo» a sistema filosófico, o que só foi possível devido
exactamente ao cariz utilitário que é inerente à mentalidade moderna e profana
em geral, e também porque, no estado actual de decadência intelectual, se
chegou a perder completamente de vista a própria noção de verdade, de tal modo
que a de utilidade ou de comodidade acabou por substitui-la totalmente”. [1]
[1] GUÉNON, René. A Ilusão da Vida
Vulgar, disponível em: http://wearetime.blogspot.com.br/2015/10/a-ilusao-da-vida-vulgar-por-rene-guenon.html
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