domingo, 14 de fevereiro de 2016

O Materialismo Real segundo René Guénon

por: Gustavo Aguiar


No curso de um estágio tão avançado do Kali-Yuga em que nos encontramos imersos, urge tecer algumas breves elucubrações pertinentes aos devaneios suscitados pelo agigantamento daquilo que René Guénon perspicazmente denominou “materialismo real” para indicar o desnível entre o eixo pragmático-utilitário das ciências profanas e o seu correspondente teórico-filosófico no plano especulativo.

Se, por um lado, o preclaro mestre considera a filosofia como uma espécie de vulgarização da já há muito combalida espiritualidade ocidental – vide Crise do Mundo Moderno -, por outro, esse processo “catagógico” de dispersão na multiplicidade pura que se operou no âmbito do pensamento filosófico nem se compara ao seu equivalente racionalista/cientificista, conquanto permaneça, ao contrário deste último, indiferente à realidade enquanto circunvisão autônoma, ainda que venha, ocasionalmente, e de maneira muito tímida, a exaltá-la.

Quando a marginalização ordinária dos ritos de transcendência espiritual se torna consectário lógico da auto-ilusão materialista, a “realidade” – empregada aqui em acepção fenomênica subjetiva daquilo que se nos apresenta imediatamente aos sentidos – termina por alhear-se completamente à esfera objetiva do espírito universal. Poderíamos evocar, à guiza de esclarecimento, a clássica definição trifásica do pensamento ocidental (teologia – metafísica – ciência positiva) de Auguste Comte, sem, no entanto, olvidar que essa formulação já se insere na órbita de um contexto esotericamente decadente, é dizer: alijado de qualquer acuidade espiritual.

Vejamos, então, como Guénon situa o “materialismo real” a partir da transição do pensamento filosófico para a deambulação cientificista da era moderna:

“O próprio mecanicismo e o materialismo só puderam adquirir uma influência generalizada ao passar do domínio filosófico ao científico; o que diz respeito a este último, ou aquilo que se apresenta com ou sem razão como revestido deste carácter «científico», tem seguramente, por razões diversas, muito mais acção do que as teorias filosóficas sobre a mentalidade vulgar, na qual há sempre uma crença pelo menos implícita na verdade de uma «ciência», cujo carácter hipotético lhe escapa inevitavelmente, enquanto que tudo o que se qualifica de «filosofia» deixa essa mentalidade vulgar mais ou menos indiferente; a existência de aplicações práticas e utilitárias num caso, e a sua ausência, no outro, não é totalmente alheia a isso. Este facto leva-nos mais uma vez à idéia da «vida vulgar», na qual entra efectivamente uma boa dose de «pragmatismo»; e o que dizemos é ainda, claro, totalmente independente do facto de alguns dos nossos contemporâneos quererem erigir o «pragmatismo» a sistema filosófico, o que só foi possível devido exactamente ao cariz utilitário que é inerente à mentalidade moderna e profana em geral, e também porque, no estado actual de decadência intelectual, se chegou a perder completamente de vista a própria noção de verdade, de tal modo que a de utilidade ou de comodidade acabou por substitui-la totalmente”. [1]


[1] GUÉNON, René. A Ilusão da Vida Vulgar, disponível em: http://wearetime.blogspot.com.br/2015/10/a-ilusao-da-vida-vulgar-por-rene-guenon.html

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