terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O Tao Te King e a Dialética do Absurdo

por: Gustavo Aguiar

“Para ganhar conhecimento, adicione coisas todos os dias. Para ganhar sabedoria, elimine coisas todos os dias”. – Lao Tsé

Traçar um paralelo de diferenças entre as obras de Albert Camus e Lao Tsé seria uma tarefa demasiado enfadonha para qualquer um que tenha mergulhado em seus escritos ao ponto de deles extrair algo de verdadeiramente enriquecedor.  Nem é este o nosso desiderato, pelo que nos limitaremos a abordar aqui, da forma mais clara e sucinta possível – afinal “o excesso de palavras leva ao esgotamento” - um ponto específico no qual ambos os pensamentos convergem de maneira quase inextricável: a dialética do absurdo, em cuja antinomia o espírito nostálgico do homem se vê divorciado do mundo circundante, tornando-se “um estrangeiro de si mesmo” e o não fazer (wu wei) da gnosis taoísta como o modo através do qual o Verbo (Tao) se comunica conosco em silêncio tumular, é dizer, sem pronunciar sequer uma única sílaba.

No sexto aforisma do Tao Te King, Lao Tsé nos revela¹ que “quando todos sob o céu afirmam que o belo é belo, o feio se manifesta. Quando todos pensam saber tão bem o que é bom, o mau se manifesta”.  Rijckenborgh e Petri traduzem bem a profundidade dessas palavras ao assinalarem que, na referida passagem, Lao Tsé não fez menos do que anunciar o papel do sábio diante da ordem dialética do microcosmo, fundamentada quase que totalmente em contradições, de que belo e feio, bem e mal constituem apenas os exemplos mais recorrentes.

Não outro é o significado que Albert Camus, ao tratar do suicídio filosófico como uma questão de tudo ou nada², imprime à dialética do absurdo, composta essencialmente por antinomias:

“O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Isto é o que não devemos esquecer. A isto é que devemos nos apegar, porque toda a consequência de uma vida pode nascer daí. O irracional, a nostalgia humana e o absurdo que surge de seu encontro, eis os três personagens do drama que deve necessariamente acabar com toda a lógica de que uma existência é capaz”. (CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, p. 39)

Nesse sentido, o feio existe para lembrar ao belo que este último não passa de uma ilusão, um simulacro imposto à percepção sensorial que deflui de uma espécie de distorção egoística do átomo primevo. O mesmo ocorre com o mal, cujo sentido é restituir ao bem sua insignificância originária, anterior à moldura estética em que habitualmente o enxergamos. Em termos mais simplificados: trata-se de nos libertarmos dos grilhões que nos mantém presos à condição humana e atingir um estado de ócio contemplativo que nos permita acessar a beleza edênica da eternidade com o coração, em vez de com o nervo óptico.

O esplendor da beleza do Tao possui uma dimensão que não pode ser verbalizada ou transmitida por vias discursivas a um interlocutor sedento de seus ensinamentos.

Ele é a irradiação vivente e magnética que une a totalidade das consciências despertas na onimanifestação do macrocosmo. Por isso, a lei da sabedoria prescreve àqueles que pretendem decifrar o Tao o método do não fazer. Este, por sua vez não é, como poderíamos imaginar, uma atitude negativa em face das vicissitudes mundanas, mas “uma alegria calma e silenciosa; prossegui nessa calma alegria silenciosa, em total autorrendição ao átomo original, o Reino em vós. Isso é ‘adotar o não fazer’. Isso é compreender o ensinamento sem palavras. ‘Não sou eu que devo crescer, mas Ele, o Outro, que é maior do que eu. Eu devo diminuir, eu devo desaparecer nesse Outro, o ser oculto no átomo original’” (RIJCKENBORGH, J. van; PETRI, Catharose de. A Gnosis Chinesa: comentários sobre o Tao Te King de Lao Tsé, p. 40)

O Tao nos fornece as ferramentas de que necessitamos para, em contrita resignação, buscarmos sincronizar³ a circularidade absurda da dialética que rege a esfera deste mundo - em que o amor não pode remeter a nada que não seja ao ódio, e a beleza, a nada que não seja à feiura - com a ascese espiralada do supra-mundo, onde não há circunlóquio de manifestações ou remissões circulares de antíteses conceituais, mas tão somente a subida de degraus que nunca tornam a se repetir na senda que nos conduzirá, ainda que em questão de milênios, de éons, ao espírito do vale, ao Reino de Shamballah:

“Vede o caminho – Tao

Segui o caminho – Te

Compeendei o caminho – King”.


NOTAS:

¹ Emprego o vocábulo revelação em acepção gnóstica do ouvir o chamado do Deus em nós.

² Para Camus, ou o ser aceita a realidade absurda em que ele vive ou renuncia sua existência por meio do suicídio. Tertium non datur.

³  O Tao não promete a experiência transcendental do espírito como faz um sem número de escolas ocultistas, não raro oriundas de seitas new age, mas tão somente o auto-equilíbrio que nos permite conhecer em vida um pouco do caminho que só começaremos a trilhar efetivamente após a morte.

REFERÊNCIAS:

RIJCKENBORGH, J. van; PETRI, Catharose de. A Gnosis Chinesa: comentários sobre o Tao Te King de Lao Tsé. Lectorium Rosicrucianum: São Paulo, 2010.


CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. BestBolso,: Rio de Janeiro, 2010. 

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