por: Gustavo Aguiar
“Para ganhar conhecimento, adicione coisas todos os dias.
Para ganhar sabedoria, elimine coisas todos os dias”. – Lao Tsé
Traçar um paralelo de diferenças entre as obras de Albert
Camus e Lao Tsé seria uma tarefa demasiado enfadonha para qualquer um que tenha
mergulhado em seus escritos ao ponto de deles extrair algo de verdadeiramente enriquecedor. Nem é este o nosso desiderato, pelo que nos
limitaremos a abordar aqui, da forma mais clara e sucinta possível – afinal “o
excesso de palavras leva ao esgotamento” - um ponto específico no qual ambos os
pensamentos convergem de maneira quase inextricável: a dialética do absurdo, em
cuja antinomia o espírito nostálgico do homem se vê divorciado do mundo
circundante, tornando-se “um estrangeiro de si mesmo” e o não fazer (wu wei) da gnosis taoísta como o modo
através do qual o Verbo (Tao) se comunica conosco em silêncio tumular, é dizer,
sem pronunciar sequer uma única sílaba.
No sexto aforisma do Tao Te King, Lao Tsé nos revela¹ que “quando
todos sob o céu afirmam que o belo é belo, o feio se manifesta. Quando todos
pensam saber tão bem o que é bom, o mau se manifesta”. Rijckenborgh e Petri traduzem bem a
profundidade dessas palavras ao assinalarem que, na referida passagem, Lao Tsé
não fez menos do que anunciar o papel do sábio diante da ordem dialética do
microcosmo, fundamentada quase que totalmente em contradições, de que belo e
feio, bem e mal constituem apenas os exemplos mais recorrentes.
Não outro é o significado que Albert Camus, ao tratar do suicídio filosófico como uma questão de tudo ou nada², imprime à dialética do absurdo, composta essencialmente por antinomias:
“O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Isto é o que não devemos esquecer. A isto é que devemos nos apegar, porque toda a consequência de uma vida pode nascer daí. O irracional, a nostalgia humana e o absurdo que surge de seu encontro, eis os três personagens do drama que deve necessariamente acabar com toda a lógica de que uma existência é capaz”. (CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, p. 39)
Nesse sentido, o feio existe para lembrar ao belo que este
último não passa de uma ilusão, um simulacro imposto à percepção sensorial que
deflui de uma espécie de distorção egoística do átomo primevo. O mesmo ocorre
com o mal, cujo sentido é restituir ao bem sua insignificância originária,
anterior à moldura estética em que habitualmente o enxergamos. Em termos mais
simplificados: trata-se de nos libertarmos dos grilhões que nos mantém presos à
condição humana e atingir um estado de ócio contemplativo que nos permita
acessar a beleza edênica da eternidade com o coração, em vez de com o nervo óptico.
O esplendor da beleza do Tao possui uma dimensão que não
pode ser verbalizada ou transmitida por vias discursivas a um interlocutor
sedento de seus ensinamentos.
Ele é a irradiação vivente e magnética que une a totalidade
das consciências despertas na onimanifestação do macrocosmo. Por isso, a lei da
sabedoria prescreve àqueles que pretendem decifrar o Tao o método do não fazer. Este, por
sua vez não é, como poderíamos imaginar, uma atitude negativa em face das vicissitudes
mundanas, mas “uma alegria calma e silenciosa; prossegui nessa calma alegria
silenciosa, em total autorrendição ao átomo original, o Reino em vós. Isso é ‘adotar
o não fazer’. Isso é compreender o ensinamento sem palavras. ‘Não sou eu que
devo crescer, mas Ele, o Outro, que é maior do que eu. Eu devo diminuir, eu devo
desaparecer nesse Outro, o ser oculto no átomo original’” (RIJCKENBORGH, J.
van; PETRI, Catharose de. A Gnosis Chinesa: comentários sobre o Tao Te King de
Lao Tsé, p. 40)
O Tao nos fornece as ferramentas de que necessitamos para,
em contrita resignação, buscarmos sincronizar³ a circularidade absurda da
dialética que rege a esfera deste mundo - em que o amor não pode remeter a nada
que não seja ao ódio, e a beleza, a nada que não seja à feiura - com a ascese espiralada do supra-mundo, onde não há circunlóquio de manifestações ou
remissões circulares de antíteses conceituais, mas tão somente a subida de degraus
que nunca tornam a se repetir na senda que nos conduzirá, ainda que em questão
de milênios, de éons, ao espírito do vale, ao Reino de Shamballah:
“Vede o caminho – Tao
Segui o caminho – Te
Compeendei o caminho – King”.
NOTAS:
¹ Emprego o vocábulo revelação em acepção gnóstica do ouvir o chamado do Deus em nós.
² Para Camus, ou o ser aceita a realidade absurda em que ele vive ou renuncia sua existência por meio do suicídio. Tertium non datur.
³ O Tao não promete a experiência transcendental do espírito como faz um sem número de escolas ocultistas, não raro oriundas de seitas new age, mas tão somente o auto-equilíbrio que nos permite conhecer em vida um pouco do caminho que só começaremos a trilhar efetivamente após a morte.
REFERÊNCIAS:
RIJCKENBORGH, J. van; PETRI, Catharose de. A Gnosis Chinesa:
comentários sobre o Tao Te King de Lao Tsé. Lectorium Rosicrucianum: São Paulo,
2010.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. BestBolso,: Rio de Janeiro,
2010.
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