por: Gustavo Aguiar
Quando Nietzsche aduz que há algo de extremamente
problemático com a moralidade dominante ou com o conjunto de morais prevalecentes
em determinados tempo e espaço, chegando mesmo a defini-la como a “linguagem figurada das paixões” [1], ele
parece penetrar o centro cardeal da philosofia
perennis e abordar um tema que os membros desta escola jamais se furtaram
de enfrentar com a máxima seriedade, qual seja: ao qualificar comportamentos em
termos de bom e mau, justo e injusto, certo e errado, a moralidade circunscreve
o universo do seu âmbito de incidência a um logos
estritamente discursivo, dedicado inteiramente a verbalizações
hermenêuticas que se inserem na órbita de uma racionalidade completamente
divorciada do intelecto puro, fundado no Absoluto.
Aliás, a distinção entre razão cognoscitiva e intuição
intelectual constitui o fundamento da legitimidade de todo o perenialismo, o
que não significa, entretanto, que ambas gozam de uma autonomia funcional, como
se os pensamentos secular e teológico consubstanciassem um fim em si mesmos. O
ideal é que o sujeito, naturalmente dotado de razão e intuição se policie no
sentido de não permitir que uma faculdade se sobressaia de modo a obnubilar ou
mesmo silenciar a outra. Tal concepção coloca uma série de entraves ao alcance
da consciência unitiva da Base divina, na medida em inculca na mente do
intérprete uma confusão fatal entre as esferas da unidade e da multiplicidade,
o que equivale a dizer, erroneamente, frise-se à exaustão, que o plano factual
corresponde milimetricamente à beleza transcendental da Base divina, aquilo que
os gregos chamavam de μετανοεῖν
(metanóia).
A ideia de que o intelecto transcende a mera faculdade do uso
da razão, e, logo, os limites de uma moralidade racionalmente concatenada, encontra
eco em um dos principais arcanos da sabedoria perene, o qual Frithjof Schuon sintetiza
nos seguintes dizeres:
“Uma das chaves para a compreensão da nossa verdadeira
natureza e do nosso destino último é o fato de que as coisas deste mundo nunca
são proporcionais à extensão real da nossa inteligência. Esta é feita pelo
Absoluto, ou ela não é; entre as inteligências deste mundo, só o espírito
humano é capaz de objetividade, o que implica – ou o que prova – que só o
Absoluto permite a nossa inteligência poder inteiramente o que ela pode, e ser
inteiramente o que ela é”. [2]
No
mesmo diapasão, René Guénon:
“O
intelecto transcendente, para captar diretamente os princípios universais, deve
ser ele mesmo de ordem universal; não é uma única faculdade individual, e considerá-lo
como tal seria contraditório, pois não pode haver nas possibilidades do
indivíduo o superar seus próprios limites, o sair das condições que lhe definem
enquando indivíduo. A razão é uma faculdade própria e especificamente humana;
mas o que está mais além da razão é verdadeiramente ‘não-humano’; é o que torna
possível o conhecimento metafísico, e este, há que repeti-lo outra vez, não é
um conhecimento humano”. [3]
Deduzir que no conteúdo de uma moralidade veiculada por
palavras alberga a salvação absoluta, é um erro que orientalistas da
envergadura de René Guénon já haviam apontado e desmascarado reiteradamente. Mas
a preocupação de Guénon, como o próprio Schuon adverte, não era justapor
acontecimentos factuais a uma moldura teorética, e sim organizar o arcabouço
principiológico da filosofia perene [4], seus prolegômenos, o que não significa,
entretanto, que nas latitudes da sua crítica ao Mundo Moderno descaibam considerações
de ordem prática. Muito pelo contrário! Quando Guénon assevera que “é, aliás,
uma singular ilusão, própria do ‘experimentalismo’ moderno, julgar que uma
teoria pode ser provada pelos fatos, quando, na realidade, os mesmos fatos
podem sempre explicar-se igualmente por diversas teorias diferentes” [5], isso
serve, inclusive para desmistificar as reivindicações abusivas da ciência
moderna, nela inclusa a “ciência da moral”, contra a qual Nietzsche não
economiza antipatias.
É bem provável que Nietzsche nunca tenha se identificado
significativamente com a filosofia perene, mas ao expressar em termos tão
rigorosamente metafísicos um enunciado que poderia ser expresso de outro modo, ele
não nos deixa escolha senão procurar compreendê-lo em sua melhor luz. Se o
seguinte excerto não tivesse sido escrito pelo filósofo alemão, seria
perfeitamente possível creditá-lo a um perenialista:
“Que existam nas proximidades do sol inumeráveis corpos
opacos que jamais veremos é coisa que se pode inferir. Isto é um símbolo e
poderíamos dizer que um moralista psicólogo não decifra o que está escrito nas
estrelas a não ser como uma linguagem de símbolos e signos, que permite calar
muitas coisas” (NIETZSCHE: 2010, p. 109)
Com efeito, por mais trabalhado e imponente que seja um
símbolo, quer nas artes, na língua, ou na poesia, ele nunca nos comunicará mais
do que aquilo que pode ser temporalmente assimilado. Aldous Huxley já fez as
vezes de se manifestar nesse ínterim: “a natureza da Verdade-Feito não pode
descrever-se por meio de símbolos verbais a que não lhe correspondem
adequadamente. No melhor caso, só pode aludir-se a ela em termos de non sequitur e contradição” (HUXLEY,
1999, p. 123)
Esta é inclusive a razão pela qual a obra de Platão foi quase
que totalmente construída com base em antinomias: ser racionalmente claro era,
talvez, a última das preocupações do mestre da Academia, que deu prova de um engenho
incomensurável no uso de símbolos e sinais como ferramentas imperfeitas, mas
necessárias ao desvelamento extra-sensorial do Sumo Bem, desvelamento este que
não pode ser senão intuitivo. Isso numa época em que inexistiam estudos
aprofundados acerca da função simbólica da linguagem.
Mais adiante, prossegue Nietzsche, com inarredável destreza:
“Todas as morais que se referem ao indivíduo para fazer “sua
felicidade”, nada mais são que compromissos com o perigo que ameaça a pessoa
dentro de si mesma. São porventura mais que receitas contra suas paixões,
contra suas boas e más inclinações, quando tendem a mandar e dominar como amos;
astucias e pequenas ou grandes artimanhas com calor de remédio caseiro? Todas
têm formas escuras e absurdas por que se dirigem a todos e generalizam onde
deveriam particularizar. Todas se expressam de modo absoluto e se consideram absolutas.
A todas falta o sazonamento para serem suportáveis, e talvez ainda aliciantes
quando contêm especiarias em grande quantidade e têm um odor perigoso,
especialmente ‘do mundo de lá’, tudo isto
misturado com o intelecto vale bem pouca coisa e não pode ser chamado ‘ciência’
e ainda menos ‘sapiência’, dizemos e repetimos, judiciosidade, judiciosidade,
judiciosidade, juntamente com imbecilidade, imbecilidade, imbecilidade (...)” –
grifo nosso (NIETZSCHE: 2010, p. 110)
Aqui vemos a moral servindo de limitação ao Outro que habita
o universo já bastante circunscrito do nosso microcosmo; é, aliás, este Outro,
a “pessoa dentro de si mesma” que se encontra ameaçado. Transcender esse universo
em direção ao intelecto “puro” é um ato de transfiguração que exige mais um
esforço intuitivo do que propriamente uma moralidade racional que não consegue,
por sua própria conta e risco, ir além do significado do próprio símbolo. Quando
a moral humana caminha em direção ao símbolo, seu destino inevitável é chocar-se
violentamente contra ele. Isso porque, conforme já elucidado, razão e
intelecção são duas coisas completamente diferentes.
Na célebre preleção se Frithjof Schuon:
“O Infinito, por sua irradiação operada, por assim dizer,
pela pressão – ou pelo transbordamento – das inumeráveis possibilidades,
transpõe a substância do Absoluto, a saber, o Sumo Bem, para a relatividade;
esta transposição dá lugar a priori à
imagem refletida do Bem, a saber, o Ser criador. O Bem, que coincide com o
Absoluto, prolonga-se assim em direção à relatividade e dá lugar em primeiro ao
Ser, que contém os arquétipos, e depois à Existência, que os manifesta sob
modos indefinidamente variados e segundo os ritmos dos diversos ciclos cósmicos”.
(SCHUON: 2015, p. 11)
A moral pertence a este último domínio – o domínio da Existência,
e sua noção de Bem e Mal, bem como os meios de que dispõe para constranger
rebanhos inteiros a obedecerem cegamente seus imperativos, já foi, neste
estágio de projeção do Ser, dissolvida e relativizada na esfera da
multiplicidade. Ela está tão distante do Absoluto ou Sumo Bem que não pode
significar ordinariamente mais do que subjetivismo puro e simples. E o que
Nietzsche nos diz, embora não com o mesmo fervor espiritual que inspirou tantos
hierofantes da escola perenialista é exatamente isso. A essência da filosofia
perene encontra-se espalhada por toda a bibliografia nietzschiana. Nos limitamos
aqui a extrair alguns fragmentos correspectivos a estes ensinamentos, que
tratam especificamente da questão da moralidade, sem a mais mínima pretensão de
esgotar o assunto.
NOTAS:
[1] NIETZSCHE. F. Wilhelm. Além do Bem e do Mal, p. 100.
[2] SCHUON, Frithjof. Religio
perennis, disponível em: https://fschuon.files.wordpress.com/2014/11/religio-perennis.pdf
[3] GUÉNON, René, disponível em: http://www.reneguenon.net/IRGETGuenonMetafisicaOriental.html
[4] SCHUON, Frithjof. René Guénon: Definições, disponível em:
https://fschuon.files.wordpress.com/2013/12/rg_por_fs.pdf
[5] GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno, p. 45.
REFERÊNCIAS:
NIETZSCHE. F. Wilhelm. Além
do Bem e do Mal. Hemus: Curitiba, 2001.
GUÉNON, René: Crise do
Mundo Moderno. Clube do Tarô: São Paulo, 2007.
SCHUON, Frithjof. Nos
Caminhos da Religião Perene. WWW.FSCHUON.NET:
São José dos Campos: São Paulo, 2015.
HUXLEY, Aldous. A Filosofia
Perene. Editorial Sul-Americana: Buenos Aires, 1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário