domingo, 10 de abril de 2016

A Supra-Moralidade de Nietzsche Vista Desde a Ótica da Filosofia Perene

por: Gustavo Aguiar


Quando Nietzsche aduz que há algo de extremamente problemático com a moralidade dominante ou com o conjunto de morais prevalecentes em determinados tempo e espaço, chegando mesmo a defini-la como a “linguagem figurada das paixões” [1], ele parece penetrar o centro cardeal da philosofia perennis e abordar um tema que os membros desta escola jamais se furtaram de enfrentar com a máxima seriedade, qual seja: ao qualificar comportamentos em termos de bom e mau, justo e injusto, certo e errado, a moralidade circunscreve o universo do seu âmbito de incidência a um logos estritamente discursivo, dedicado inteiramente a verbalizações hermenêuticas que se inserem na órbita de uma racionalidade completamente divorciada do intelecto puro, fundado no Absoluto.

Aliás, a distinção entre razão cognoscitiva e intuição intelectual constitui o fundamento da legitimidade de todo o perenialismo, o que não significa, entretanto, que ambas gozam de uma autonomia funcional, como se os pensamentos secular e teológico consubstanciassem um fim em si mesmos. O ideal é que o sujeito, naturalmente dotado de razão e intuição se policie no sentido de não permitir que uma faculdade se sobressaia de modo a obnubilar ou mesmo silenciar a outra. Tal concepção coloca uma série de entraves ao alcance da consciência unitiva da Base divina, na medida em inculca na mente do intérprete uma confusão fatal entre as esferas da unidade e da multiplicidade, o que equivale a dizer, erroneamente, frise-se à exaustão, que o plano factual corresponde milimetricamente à beleza transcendental da Base divina, aquilo que os gregos chamavam de μετανοεῖν (metanóia).

A ideia de que o intelecto transcende a mera faculdade do uso da razão, e, logo, os limites de uma moralidade racionalmente concatenada, encontra eco em um dos principais arcanos da sabedoria perene, o qual Frithjof Schuon sintetiza nos seguintes dizeres:

“Uma das chaves para a compreensão da nossa verdadeira natureza e do nosso destino último é o fato de que as coisas deste mundo nunca são proporcionais à extensão real da nossa inteligência. Esta é feita pelo Absoluto, ou ela não é; entre as inteligências deste mundo, só o espírito humano é capaz de objetividade, o que implica – ou o que prova – que só o Absoluto permite a nossa inteligência poder inteiramente o que ela pode, e ser inteiramente o que ela é”. [2]    

No mesmo diapasão, René Guénon:

“O intelecto transcendente, para captar diretamente os princípios universais, deve ser ele mesmo de ordem universal; não é uma única faculdade individual, e considerá-lo como tal seria contraditório, pois não pode haver nas possibilidades do indivíduo o superar seus próprios limites, o sair das condições que lhe definem enquando indivíduo. A razão é uma faculdade própria e especificamente humana; mas o que está mais além da razão é verdadeiramente ‘não-humano’; é o que torna possível o conhecimento metafísico, e este, há que repeti-lo outra vez, não é um conhecimento humano”. [3]

Deduzir que no conteúdo de uma moralidade veiculada por palavras alberga a salvação absoluta, é um erro que orientalistas da envergadura de René Guénon já haviam apontado e desmascarado reiteradamente. Mas a preocupação de Guénon, como o próprio Schuon adverte, não era justapor acontecimentos factuais a uma moldura teorética, e sim organizar o arcabouço principiológico da filosofia perene [4], seus prolegômenos, o que não significa, entretanto, que nas latitudes da sua crítica ao Mundo Moderno descaibam considerações de ordem prática. Muito pelo contrário! Quando Guénon assevera que “é, aliás, uma singular ilusão, própria do ‘experimentalismo’ moderno, julgar que uma teoria pode ser provada pelos fatos, quando, na realidade, os mesmos fatos podem sempre explicar-se igualmente por diversas teorias diferentes” [5], isso serve, inclusive para desmistificar as reivindicações abusivas da ciência moderna, nela inclusa a “ciência da moral”, contra a qual Nietzsche não economiza antipatias.

É bem provável que Nietzsche nunca tenha se identificado significativamente com a filosofia perene, mas ao expressar em termos tão rigorosamente metafísicos um enunciado que poderia ser expresso de outro modo, ele não nos deixa escolha senão procurar compreendê-lo em sua melhor luz. Se o seguinte excerto não tivesse sido escrito pelo filósofo alemão, seria perfeitamente possível creditá-lo a um perenialista:

“Que existam nas proximidades do sol inumeráveis corpos opacos que jamais veremos é coisa que se pode inferir. Isto é um símbolo e poderíamos dizer que um moralista psicólogo não decifra o que está escrito nas estrelas a não ser como uma linguagem de símbolos e signos, que permite calar muitas coisas” (NIETZSCHE: 2010, p. 109)

Com efeito, por mais trabalhado e imponente que seja um símbolo, quer nas artes, na língua, ou na poesia, ele nunca nos comunicará mais do que aquilo que pode ser temporalmente assimilado. Aldous Huxley já fez as vezes de se manifestar nesse ínterim: “a natureza da Verdade-Feito não pode descrever-se por meio de símbolos verbais a que não lhe correspondem adequadamente. No melhor caso, só pode aludir-se a ela em termos de non sequitur e contradição” (HUXLEY, 1999, p. 123)

Esta é inclusive a razão pela qual a obra de Platão foi quase que totalmente construída com base em antinomias: ser racionalmente claro era, talvez, a última das preocupações do mestre da Academia, que deu prova de um engenho incomensurável no uso de símbolos e sinais como ferramentas imperfeitas, mas necessárias ao desvelamento extra-sensorial do Sumo Bem, desvelamento este que não pode ser senão intuitivo. Isso numa época em que inexistiam estudos aprofundados acerca da função simbólica da linguagem.

Mais adiante, prossegue Nietzsche, com inarredável destreza:

“Todas as morais que se referem ao indivíduo para fazer “sua felicidade”, nada mais são que compromissos com o perigo que ameaça a pessoa dentro de si mesma. São porventura mais que receitas contra suas paixões, contra suas boas e más inclinações, quando tendem a mandar e dominar como amos; astucias e pequenas ou grandes artimanhas com calor de remédio caseiro? Todas têm formas escuras e absurdas por que se dirigem a todos e generalizam onde deveriam particularizar. Todas se expressam de modo absoluto e se consideram absolutas. A todas falta o sazonamento para serem suportáveis, e talvez ainda aliciantes quando contêm especiarias em grande quantidade e têm um odor perigoso, especialmente ‘do mundo de lá’, tudo isto misturado com o intelecto vale bem pouca coisa e não pode ser chamado ‘ciência’ e ainda menos ‘sapiência’, dizemos e repetimos, judiciosidade, judiciosidade, judiciosidade, juntamente com imbecilidade, imbecilidade, imbecilidade (...)” – grifo nosso (NIETZSCHE: 2010, p. 110)    

Aqui vemos a moral servindo de limitação ao Outro que habita o universo já bastante circunscrito do nosso microcosmo; é, aliás, este Outro, a “pessoa dentro de si mesma” que se encontra ameaçado. Transcender esse universo em direção ao intelecto “puro” é um ato de transfiguração que exige mais um esforço intuitivo do que propriamente uma moralidade racional que não consegue, por sua própria conta e risco, ir além do significado do próprio símbolo. Quando a moral humana caminha em direção ao símbolo, seu destino inevitável é chocar-se violentamente contra ele. Isso porque, conforme já elucidado, razão e intelecção são duas coisas completamente diferentes.

Na célebre preleção se Frithjof Schuon:

“O Infinito, por sua irradiação operada, por assim dizer, pela pressão – ou pelo transbordamento – das inumeráveis possibilidades, transpõe a substância do Absoluto, a saber, o Sumo Bem, para a relatividade; esta transposição dá lugar a priori à imagem refletida do Bem, a saber, o Ser criador. O Bem, que coincide com o Absoluto, prolonga-se assim em direção à relatividade e dá lugar em primeiro ao Ser, que contém os arquétipos, e depois à Existência, que os manifesta sob modos indefinidamente variados e segundo os ritmos dos diversos ciclos cósmicos”. (SCHUON: 2015, p. 11)

A moral pertence a este último domínio – o domínio da Existência, e sua noção de Bem e Mal, bem como os meios de que dispõe para constranger rebanhos inteiros a obedecerem cegamente seus imperativos, já foi, neste estágio de projeção do Ser, dissolvida e relativizada na esfera da multiplicidade. Ela está tão distante do Absoluto ou Sumo Bem que não pode significar ordinariamente mais do que subjetivismo puro e simples. E o que Nietzsche nos diz, embora não com o mesmo fervor espiritual que inspirou tantos hierofantes da escola perenialista é exatamente isso. A essência da filosofia perene encontra-se espalhada por toda a bibliografia nietzschiana. Nos limitamos aqui a extrair alguns fragmentos correspectivos a estes ensinamentos, que tratam especificamente da questão da moralidade, sem a mais mínima pretensão de esgotar o assunto.


NOTAS:

[1] NIETZSCHE. F. Wilhelm. Além do Bem e do Mal, p. 100.   
  
[2] SCHUON, Frithjof. Religio perennis, disponível em: https://fschuon.files.wordpress.com/2014/11/religio-perennis.pdf


[4] SCHUON, Frithjof. René Guénon: Definições, disponível em: https://fschuon.files.wordpress.com/2013/12/rg_por_fs.pdf

[5] GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno, p. 45.


REFERÊNCIAS:

NIETZSCHE. F. Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Hemus: Curitiba, 2001.

GUÉNON, René: Crise do Mundo Moderno. Clube do Tarô: São Paulo, 2007.

SCHUON, Frithjof. Nos Caminhos da Religião Perene. WWW.FSCHUON.NET: São José dos Campos: São Paulo, 2015.

HUXLEY, Aldous. A Filosofia Perene. Editorial Sul-Americana: Buenos Aires, 1999.

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