domingo, 24 de julho de 2016

Os modos de ser tradicionais enquanto estar-lançado em meio a co-possibilidades existenciais: uma breve reflexão antropológica sobre o Dasein

por: Gustavo Aguiar


“A tradição fala a cada homem a linguagem que ele pode compreender, com a condição de que ele de fato a queira escutar” – Frithjof Schuon

Há motivos suficientes para que consideremos Martin Heidegger como o filósofo mais importante do século XX, assim como Nietzsche o fora no século XIX. A influência exercida pelo pensamento nietzscheano nas elucubrações do mestre da floresta negra patenteia-se em diversas passagens e epígrafes presentes em sua obra prima Sein und Zeit (Ser e Tempo), mas com um enfoque inteiramente inovador em que a famigerada morte de Deus já não se coloca como objeto de questionamento prévio, e sim como um dado da realidade ou uma condição necessária para se estabelecer o lugar do homem no mundo a partir das múltiplas possibilidades que este experimenta no curso da sua trajetória existencial, que, por sua vez, passa a se horizontalizar, por assim dizer, com o advento do giro hermenêutico filosófico. Contudo, é na antologia poética de Friedrich Hölderlin que Heidegger encontrará a fonte de suas maiores inspirações.    

Sucessor da cátedra de Edmund Husserl na universidade de Freiburg, Heidegger partilha do mesmo repúdio de Nietzsche em relação ao pensamento sistemático, de modo que não demonstra a menor preocupação em estruturar sua analítica ontológico-existencial em um sistema fechado como, por exemplo, Kant e Descartes, transmitindo a impressão inicial de que as ideias se encontram suspensas no ar, como peças flutuantes de um complicadíssimo quebra-cabeça. Entretanto, essa impressão se dissipa tão logo aprendemos a “decifrar” a ontologia heideggeriana em seu epicentro gravitacional, qual seja: o ser-aí-no-mundo (Das in-der-Welt-Sein ou, simplesmente, Dasein), que, para Heiddeger, é o único ente capaz de questionar o ser, uma espécie de ente privilegiado que “[...] possui uma compreensão do ser. Ele existe imediatamente em um mundo. Ou seja, o Dasein é o homem na medida em que existe na experiência cotidiana, junto com os demais entes com seus afazeres e preocupações”. [1] É inclusive o fato de o Dasein se valer de uma linguagem própria, diferentemente dos animais, das plantas e dos rochedos que o singulariza enquanto ente. A morada do Dasein é a linguagem que vem ao encontro dentro do mundo, tendo em vista que quem fala, segundo Heidegger não é a expressão humana, mas a linguagem ao desvelar o velado e desencobrir o encoberto lá onde mundo e coisa se di-ferenciam no rasgo da sua convocação (HEIDEGGER: 2003, p. 23)

Antes de avançarmos na nossa investigação, impende salientar que um dos maiores méritos de Heidegger foi ter reatado o laço que ligava o ser dos entes intramundanos ao seu significado embrionário da presença grega. O próprio conceito de verdade é repensado para abarcar a “luta” travada no interior da dupla concepção de verdade como desencobrimento e correção, disputa que encontra sua culminação máxima na alegoria da Caverna de Platão e sem a qual a totalidade do ser do sendo não pode ser autenticamente compreendida em seu poder-ser mais próprio. Não mais localizada fora do homem como algo extrínseco às suas propriedades constitutivas, a verdade é deslocada para dentro dele, e aquilo que vem de encontro dentro do mundo não é senão algo que nós, enquanto homens, já descobrimos na decisão antecipadora do ser da presença. “O ser – e não o ente – só se dá porque a verdade é. Ela só é na medida e enquanto a pre-sença é. Ser e verdade ‘são’, de modo igualmente originário”. (HEIDEGGER: 2005, p. 299)  

Com o termo Dasein (ser-aí-no-mundo ou estar-no-mundo), Heidegger quer designar o homem em seu caráter de acontecimento factual sempre atualizante, que está jogado aí no mundo sem saber de onde veio e para aonde vai, movido por um sentimento de angústia e estranhamento diante do ser-para-morte (cura). “O angustiar-se abre, de maneira originária e direta, o mundo como mundo”. (HEIDEGGER: 2005, p.251) Se, por um lado, é verdade que para Heidegger o Dasein nunca se realiza ou plenifica, conquanto seja a tradução de um projeto inacabado e inacabável em cuja temporalização está em jogo a essência do homem enquanto existência, por outro, é preciso ter em mente que o ser retira ou absorve a singularidade do sendo da intramundanidade do mundo, é dizer: o ser só pode ser própria e autenticamente dentro de um mundo, com toda a fatalidade que isso implica e acarreta. Em outras palavras: o ser é aquilo que já está antecipadamente compreendido na abertura de manifestação para a afluência do sendo em seu sentido mais próprio e originário. Daí a ideia central no pensamento heideggeriano de que todo ato de interpretação se volta, necessariamente, para algo que já está essencialmente compreendido de antanho. O Dasein tem que poder se religar originariamente a essa pré-compreensibilidade da essência das coisas, na medida em que “ligação originária diz uma ligação que deve anteceder, que nós não apreendemos a essência com base numa pesquisa maior possível de fatos, mas que só podemos determinar fatos por já termos compreendido a essência das coisas”. (HEIDEGGER: 2012, p. 170)

O horizonte de possibilidades na abertura do qual o ser da presença está lançado tem que poder se coadunar com a multiplicidade de modos de ser tradicionais assimilados na espacialidade do ser-no-mundo e com sua iniludível propriedade categorial de ser-junto-a(os outros) por intermédio da de-cisão antecipadora como manifestação da cura em sentido próprio. “Enquanto cura, a totalidade ontológica da pre-sença diz: preceder-a-si-mesma-em (um mundo) enquanto ser-junto-a (entes que vêm ao encontro dentro do mundo)”. (Heidegger: 2012, p.121)

Evidentemente, não queremos advogar a tese absurda de que Heidegger é um autor tradicionalista no mesmo sentido em que costumeiramente se atribui este epíteto a pensadores da estirpe de René Guénon e Julius Evola, mas tão-somente que o estar previamente compreendido como vetor de possibilidades existenciais pressupõe um re-enraizamento, um voltar a instalar-se no solo de uma tradição ontologicamente sedimentada e assentada num espaço que comporta uma miríade de possíveis manifestações dimanantes do mesmo nascedouro, de uma fonte comum de onde tudo flui e para cujas águas tudo está fadado a retornar, sem que isso resulte no congestionamento aporético dos modos de ser ou na estagnação da experiência cotidiana. Seria mais adequado falarmos, então, em uma co-possibilidade de manifestações do ser que vai ao e de encontro a si mesmo no intramundo dos entes pelo horizonte de cotidianidade mediana da presença, de modo que, por cotidianidade, Heidegger indica a “[...] a temporalidade que possibilita o ser da pré-sença” em sua inter-relação com os demais entes no dia-a-dia (HEIDEGGER: 2012, p. 175)

Tal entendimento pode ser mais claramente visualizado em um dos postulados fundamentais da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer - discípulo de Heidegger -, para quem “a consciência da história efeitual vai muito além de mera comparação, de mero igualar; o que ocorre é uma transformação da tradição em experiência, mantendo-se aberta”. (SALGADO: 2008, p. 56). Mas o que exatamente possibilita esse “manter-se aberto” no marco de uma analítica existencial que se pretenda ontologicamente válida? Qual é o fundamento de legitimidade da unidade originária da estrutura da cura enquanto ser-para-o-fim e como predisposição do Dasein de angustiar-se perante a morte? A resposta de Heidegger reside no âmago da temporalidade, que, aliás, não deve ser confundida com passado, presente e futuro, haja vista que estes conceitos pertencem a uma compreensão imprópria de tempo, um tempo já submetido ao processo de temporalização da temporalidade em sentido próprio e ainda mais originário.  

Em vez disso, fala-se de um esquema horizontal balizador da unidade “ek-stática” da temporalidade, composto, sequencialmente, por três momentos distintos, se bem que reciprocamente intercambiáveis, quais sejam: porvir, vigor de ter sido e atualidade. Esses três momentos ek-státicos da temporalidade constituem a “unidade de existência”, e, de conseguinte, a “totalidade da estrutura da cura”. Nos dizeres de Heidegger, “o característico do ‘tempo’ acessível à compreensão vulgar consiste, entre outras coisas, justamente no fato de que, no tempo, o caráter ekstático da temporalidade originária é nivelado a uma pura sequência de agoras, sem começo nem fim. De acordo com seu sentido existencial, esse nivelamento funda-se, porém, numa determinada temporalização possível, pela qual a temporalidade temporaliza impropriamente esse ‘tempo’. Se, portanto, o ‘tempo’ acessível à compreensibilidade da pre-sença se comprova como não originário, e, além disso, como oriundo da temporalidade própria, então justifica-se, segundo a sentença a potiori fit denominatio, a designação da temporalidade agora liberada como tempo originário”. (HEIDEGGER: 2012, p. 123)

É precisamente nesse horizonte ek-stático de temporalidade que a existência (quo) do estar-lançado coloca em jogo a essência (quid) do ser da presença que vigora desde o início por estar sempre presente. É assim que toda a reviravolta existencial protagonizada por Heidegger pode ser apreendida como mutabilidade contínua da essência das coisas, mutabilidade esta que vem necessariamente acompanhada de uma atualidade. Se antes ser e ente figuravam estrutural e até dimensionalmente apartados – o primeiro, como objeto de estudo da ontologia e o segundo, das ciências ônticas -, no diagnóstico heideggeriano elas estão em uma relação de imbricação mútua, ao ponto de testemunharmos uma fusão ôntico-ontológica, a gênese de um novo modo de filosofar e de problematizar as verdadeiras condições de possibilidade das ciências ônticas.  

Todavia, esses componentes da totalidade estrutural da unidade ek-stática da temporalidade em sentido próprio não estão dispostos em um encadeamento progressivo ou linear, razão pela qual não podem ser pensados em termos de “antes” e “depois”, mas tão-somente de “entre”, na medida em que o que antecede e sucede o fenômeno de estar-lançado é a imersão na mais profunda nebulosidade, e é exatamente neste ponto que o pensamento heideggeriano revela seu lado mais sombrio: morte e nascimento constituem as duas modalidades do fim, e o “estar lançado” só pode se dar “entre” esses dois momentos obscuros. Em verdade, porvir, vigor de ter sido e atualidade se encontram em uma relação de interpenetração dialógica ou de justaposição, de maneira que “temporalização não significa ‘sucessão’ de ekstases. O porvir não vem depois do vigor de ter sido e este não vem antes da atualidade. A temporalidade se temporaliza num porvir atualizante do vigor de ter sido”. (HEIDEGGER : 2012, p. 149) Disso decorre que, para Heidegger, o temor e a angústia enquanto modos da disposição fundamental do Dasein “ fundem-se primariamente no vigor de ter sido, na totalidade da cura”, mas sua temporalização própria se origina de ek-stases diferentes. A angústia brota do porvir, e o temor, da atualidade. Ambos se mesclam em um modo de ser do vigor de ter sido, qual seja, segundo Heidegger: o esquecimento. “A recordação só é possível com base no esquecimento, e não o contrário”. (HEIDEGGER, p. 136)

A temporalidade originária em cujo domínio o ser-para-a-morte se angustia libertando a presença da cotidianidade mediana característica do tempo impróprio é finita, na medida em que o Dasein, malgrado esteja lançado em múltiplas possibilidades e sujeito a toda sorte de mudanças, é um ente dotado de uma série de limitações. Seguindo a esteira desse raciocínio, Heidegger vai concluir que é precisamente o caráter de finitude do tempo próprio que nos permite pensar o tempo impróprio em sua infinitabilidade. Ora, quando a morte chega e cessamos de existir, o tempo continua vigendo para os demais entes. É somente na e a partir da vigência da presença no tempo que o estar-lançado passa a significar alguma coisa que é e está sendo, e é pelo fato de o Dasein ser o único ente privilegiado capaz de esquecer que ele pode questionar sua própria existência e, por meio do questionamento, rememorá-la. A resposta “mora” no questionamento. Por isso, questionar já é, em certa medida, responder.  

Apesar de entendermos a inadequação consistente na pretensão de conferir roupagens antropológicas à analítica heideggeriana, seria um desperdício incomensurável nos abstermos de aproveitar o legado do mestre da floresta negra na lida com a questão dos modos de ser tradicionais experimentados pelo Dasein. Antropologicamente, é forçoso reconhecer a existência de uma pluralidade de Daseins, de seres-no-mundo, a irem de encontro às múltiplas possibilidades que para eles se abre na compreensão através do tempo. Destarte, é intuitivo que, existindo uma variedade de Daseins – compreendidos em cada um deles predicações de raça, etnia, língua e nacionalidade -, há uma miríade de tradições a fornecer-lhes uma significação específica que se revelam na concretude da experiência cotidiana do ser da presença. Mas antes de relacionar a questão da tradição com o deixar ir e fazer ver o ser dos entes intramundanos, precisamos esclarecer em que sentido empregamos o vocábulo “tradição”, e aqui torna-se imprescindível buscar arrimo na concepção tradicionalista de René Guénon, para quem tradição deve ser etimologicamente compreendida como “o que se transmite”, seja por intermédio da oratória, seja pela escrita. [2] Nesse ponto, urge esclarecer que evocamos a autoridade de Guénon sem a mais mínima intenção de abordar a tese perenialista da unidade transcendente das religiões, tema que melhor se ajustaria a investigações acerca do caráter transcendente/não-transcendente do Dasein, o que foge completamente ao objetivo do presente estudo.
  
Portanto, é mister que em Heidegger cada tradição exista em mundos diferentes, sem que seus diferentes ritmos de desenvolvimento e aperfeiçoamento impliquem na superioridade de uma tradição sobre a outra, tendo em vista que o ser da presença está indo de encontro àquilo que lhe está sendo tradicionalmente comunicado dentro do mundo por meio da linguagem, e a circularidade que se dá entre linguagem-mundo-compreensão experimenta significados muito distintos, a depender da conjuntura em que se projetam existencialmente como Dasein. Por isso seria mais consentâneo aludirmos a uma co-possibilidade de perspectivas existenciais do que a meras possibilidades. No primeiro caso, estamos levando em consideração a pluralidade de modos de existir no seio de uma espacialidade e de uma historicidade (não-historiográfica) que se projetam temporalmente. No segundo, incorreríamos no erro de privilegiar uma concepção unívoca do horizonte do possível, como se todos os Daseins estivessem destinados a se projetarem única e exclusivamente em determinada direção. A plurivocidade é inerente à trajetória circular do ser da presença que acontece com e no tempo, é dizer, estando temporalmente enraizadas. Perlustrando esta senda, o filósofo e geopolítico russo Alexandr Dugin, lastreado na teoria do pluriversum planetário de autoria do ensaísta francês Alain de Benoist, preleciona: “o filósofo Martin Heidegger introduz o conceito de ‘Dasein’, ‘Ser-Aí’, descrevendo a estrutura do relacionamento do homem com a existência. De acordo com Heidegger, o ‘Dasein’ é a realidade e mentalidade primária, a racionalidade, a filosofia e a cultura são subsequentemente superestruturadas sobre ele. Na Teoria do Mundo Multipolar, o ponto de princípio e a afirmação da pluralidade de Daseins, ou seja, a garantia de que cada sociedade, cultura, etnia ou agrupamento nacional tem seu próprio Dasein e, partindo deles, ramificações de sistemas culturais, sociais, políticos, religiosos e filosóficos são subsequentemente criados. A pluralidade de Daseins e a busca por diferentes ‘mundos reais’ das nações da Terra baseadas nesse princípio, constituem a essência da filosofia da multipolaridade”. (DUGIN: 2012, p. 53)

Esse não é o lugar propício para tratarmos dos pormenores da teoria do mundo multipolar, bastando assinalar que tal prognóstico se orienta inteiramente pela proposta de construção de um pluriversum planetário no bojo do qual cada tradição encerra um universo dotado de latitudes e longitudes próprias. Essa coexistência de universos múltiplos (multiverso) constituiria uma alternativa ao esquema de poder do globalismo unipolar de cariz americanocêntrico, que não só ameaça culturas e tradições inteiras com um modelo civilizacional violento e neocolonialista, como também impõe entraves à conquista de uma real e efetiva autodeterminação dos povos, que, diga-se de passagem, a dogmática dos “direitos humanos” vem falhando reiteradamente em implementar. O círculo hermenêutico-filosófico instaurado pelo Dasein seria, conforme já mencionado alhures, a fonte de legitimidade não só para a redefinição da plataforma civilizatória e para a ressoberanização de comunidades políticas autonomamente constituídas como também para a inauguração de uma nova epistemologia, um novo modo de pensar as bases fundacionais do conhecimento humano.

Da mesma forma que para existir autenticamente a historicidade, a espacialidade, a linguisticidade, a mundanidade e todos os aspectos da realidade ontológica que, na condição de instrumentos vêm ao encontro na ocupação do manual devem estar enraizados na temporalidade originária, o que assegura a continuidade dos diversificados modos de ser tradicionais é sua projeção no tempo, com a ressalva que a tradicionalidade não constitui um mero instrumento a conferir operacionalidade aos entes que existem dentro de um mundo, mas, antes, a condição para que estes últimos funcionem em sincronia com a autenticidade do ser intramundano da presença. Disso não decorre que a presença depende da tradição para descobrir seu poder-ser mais próprio, até porque ela já é no vigor de ter sido (na unidade ek-stática da temporalidade), mas que com e através dos modos de ser tradicionais o estar-lançado em possibilidades adquire um sentido organizacional que passa a interferir na própria maneira com que encaramos as categorias existenciais do Dasein, a saber: ser-no-mundo, ser-com-os-outros e ser-para-a-morte. A tradição passa, então, a conferir estabilidade ou durabilidade às interações convivenciais da vida pública, sem, no entanto, engessar, congelar ou debilitar de alguma forma a dinamicidade dessas interações. É sempre importante lembrar que, mesmo integrado no mundo de uma tradição, a essência do Dasein está em jogo pelo simples fato de que ele existe, e, em existindo, isto é, sendo, tanto maior sua responsabilidade para consigo mesmo. O exemplo apresentado por Heidegger para ilustrar a dimensão dessa responsabilidade é o fardo que cada época carrega de escolher seus heróis, porque é partir da grandeza ou pequenez destes últimos é que será determinado o significado de toda a presença, e, a partir dele, revelada a totalidade do seu acontecer. “Na convivência em um mesmo mundo e na de-cisão por determinadas possibilidades, os destinos já estão previamente orientados. É somente na participação e na luta que se libera o poder do envio comum. O envio comum dos destinos da pre-sença em e com a sua ‘geração’ constitui o acontecer pleno e próprio da pre-sença”. (HEIDEGGER: 2005, p. 190)

Mas nem toda a luminosidade da filosofia heideggeriana poupou o mestre da floresta negra das críticas avassaladoras, muitas delas infundadas. Dentre os seus detratores mais ferrenhos encontra-se ninguém menos do que Julius Evola que, na condição de um dos maiores porta-vozes do tradicionalismo ocidental, reserva um capítulo inteiro de sua obra Cavalgar o Tigre à desmistificação do existencialismo filosófico. Evola basicamente coloca Sarte, Jaspers e Heidegger no mesmo balaio de gatos, acusando-os injustamente de terem encontrado uma espécie de justificação para o niilismo enquanto negação do “arquétipo do homem integrado na Tradição” e alegando fazerem uso de “[...] uma terminologia arbitrária inventada de propósito, que especialmente em Heidegger chega a ser inconcebível e insuportavelmente supérflua e abstrusa” – tradução livre do espanhol. (EVOLA: 1987, p. 87) E não para por aí! Ele chega mesmo a afirmar que o angustiar-se perante o nada do Dasein, somado ao caráter horizontal da analítica existencial denunciam seu suposto rasgo niilista.  

Em que pese o enorme respeito que nutrimos pela obra do barão italiano (tanto escrita como pictórica) e seu inquestionável prestígio verificado principalmente nos círculos tradicionalistas e esotéricos, não podemos nos furtar de reconhecer sua total incompreensão acerca da obra prima daquele que fez por merecer seu lugar de destaque no panteão dos filósofos mais proeminentes desde Platão. Pode-se dizer que Evola lança mão de uma distorção capciosamente negativista do conceito de “nada” que passará a tecer o fio de seu raciocínio degradante, sendo que, para Heidegger, o nada nunca foi uma instância negativa suscetível de ser apreendida por antítese daquilo que é. Muito pelo contrário! O angustiar-se perante o nada como modo de disposição fundamental da presença nos diz justamente que o nada só pode ser em conexão com o ente, muito embora não se confunda com ele, o que equivale a dizer que ele comporta tanto um dimensão positiva (que se revela no estar-lançado do Ser-Aí) quanto uma dimensão negativa e, por isso mesmo, nadificante. O nada seria, então, uma espécie de situação-limite não submetida ao princípio da não-contradição, e, por isso mesmo, ao rigor metodológico das equações científicas. Heidegger trata especificamente da questão do nada em ensaio intitulado “Que é Metafísica?”, onde é exposto da maneira mais elegante o aspecto transcendente do ser da presença suspenso dentro do nada e o fio condutor de uma metafísica da subjetividade. Nos dizeres de Heidegger, “o ser-ai humano somente pode entrar em relação com o ente se se suspende dentro do nada. O ultrapassar o ente acontece na essência do ser-aí. Este ultrapassar, porém, é a própria metafísica. Nisso reside o fato de que a metafísica pertence à ‘natureza do homem’. Ela não é uma disciplina da filosofia ‘acadêmica’, nem um campo de ideias arbitrariamente excogitadas. A metafísica é o acontecimento essencial no âmbito do ser-aí. Ela é o próprio ser aí. Pelo fato de a verdade da metafísica residir neste fundamento abissal possui ela, como vizinhança mais próxima, sempre à espreita, a possibilidade do erro mais profundo. É por isso que nenhum rigor de qualquer ciência alcança a seriedade metafísica. A filosofia jamais pode ser medida pelo padrão da ideia da ciência”. [3]

De todo o acima exposto, conclui-se que o Dasein não se exaure, nem de longe, na elaboração de um projeto antropológico – uma vez que o objetivo principal da analítica heideggeriana, do ponto de vista do método, é justamente comprovar a não redutibilidade do ser da presença ao campo das ciências ônticas -, o que, todavia, não nos impede de pensá-lo antropologicamente tendo em vista as múltiplas possibilidades existenciais que ele experimenta no interstício entre nascimento e morte e que atinge, por assim dizer, sua situação limite na angústia enquanto disposição fundamental de ser-para-a-morte. Enquanto vigor de ter sido, o Dasein é, ele mesmo, destino, na medida em que só pode ser própria e autenticamente dentro de um mundo por estar sempre presente no horizonte de temporalidade mediana. É no esquema horizontal da unidade ek-stática da temporalidade em sentido próprio e originário (na cura) que o ser dos entes intramundanos, em existindo, coloca em jogo sua própria essência atualizável e atualizante. Se empreendemos todo esse raciocínio de dissecação da estrutura do ser-no-mundo e da situação particularmente relevante de estar lançado em co-possibilidades existenciais, foi com o desiderato de elucubrar a diversificabilidade dos modos de ser tradicionais dentro de seus respectivos mundos de referência, porque é precisamente essa coexistência de vários mundos e, por conseguinte, de várias tradições – cada qual sincronizada com um ritmo de desenvolvimento próprio -, que o ser da presença encontra um significado a mais (um plus) para o seu poder-ser originário, a fim de que cada geração seja capaz de compreender e assumir o peso da responsabilidade envolvida na marcha em direção à (re)conquista de um significado ontológico para seus destinos, tarefa que pode vingar ou soçobrar, a depender do nível de comprometimento e da ferocidade com que cada povo luta, e, lutando, liberta-se do claustro da monotonia cotidiana. Mesmo não tendo sido nosso objetivo imediato, acabamos por verificar acidentalmente que a transcendência é inerente à condição humana que se projeta como Dasein, tema em que nos aprofundaremos em oportunidade futura, bastando, por ora, prelineá-lo.  

NOTAS   
              
[1] DUARTE, Rodrigo; NAVES, Gilzane. O Ser-para-a-morte em Heidegger. Disponível em: <<http://catolicaonline.com.br/revistadacatolica2/artigosn4v2/06-filosofia.pdf>>. Acesso às 02:30 do dia 24/07/2016.

[2] GUÉNON, René. O Que é Preciso Entender por Tradição?. Disponível em: <<http://www.reneguenon.net/IRGETGuenonOqueETradicao.html>>. Acesso às 02:32 do dia 24/07/2016.

[3] HEIDEGGER, Martin. Que é Metafísica?. Disponível em: <<http://legio-victrix.blogspot.com.br/search/label/Martin%20Heidegger>>. Acesso às 02:34 do dia 24/07/2016.

REFERÊNCIAS

DUGIN, Alexandr. Geopolítica do Mundo Multipolar. Curitiba: Austral, 2012.

EVOLA, Julius. Cabalgar el Tigre. Barcelona: Nuevo Arte Thor, 1987. 

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. I. Rio de Janeiro: Vozes, 2005

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol II. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade. Petrópolis: Vozes, 2012.

HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2003.

SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A Fundamentação da Ciência Hermenêutica em Kant. Belo Horizonte: Decálogo, 2008



Nenhum comentário:

Postar um comentário