por: Gustavo Aguiar
“’Tu, que no val feliz, aonde as graças
E as palmas Cipião colheu da glória,
Quando Aníbal vexavam só desgraças,
‘Mil leões apressaste por memória;
Que, aos irmãos se ajudaras na alta guerra,
Se crê triunfo registrasse a história
‘Dos fortes filhos da fecunda. Terra!”
- Dante Alighieri (Incipit Commedia. Dantis Alogherii Florentini Natione, Non Moribus)
Um ensaio razoavelmente aceitável envolvendo qualquer
problemática levantada por aquele que é considerado o maior expoente da ciência
jurídica do século XX traz, como pressuposto de admissibilidade teórico-prático,
certo rigor sistemático, e, mais ainda, a capacidade de mobilizar ou funcionalizar
conceitos estáticos no marco de uma constitucionalidade paradigmaticamente
delimitada. Isso porque obras como Der
Hüter der Verfassung (O Guardião da Constituição), Der Begriff des Politischen (O Conceito do Político), Politische Theologie (Teologia Política)
e Der Nomos der Erde im Volkerrecht des
Jus Publicum Europaeum (O Nomos da Terra no Direito das Gentes do jus publicum europaeum) consagraram Carl
Schmitt como um divisor de águas da literatura jurídico-científica tanto
intra-estatal como inter-estatal. Em suma, é possível não gostar de Carl
Schmitt, mas é impossível, ou, pelo menos, altamente não-recomendável, se
abster de conhecê-lo.
No presente estudo, abordaremos a contraposição amigo-inimigo,
que perpassa transversalmente todo o pensamento do autor como fundamento
existencial de legitimidade para toda e qualquer questão regida normativamente
pelo jus bellum na seara do Direito
Internacional Público, cujo sujeito imediato é o conjunto de unidades
territoriais soberanamente instituídas, ou, noutros termos, os Estados
soberanos, detentores do jus ad bellum,
é dizer, do direito de declarar guerra a terceiros toda vez que algum aspecto
inerente à soberania titularizada pelo Chefe de Estado for posta em xeque.
Questões como guerra civil e disputas político-partidárias não serão tratadas
aqui por pertencerem à alçada do direito intra-estatal, pelo que nos
limitaremos a abstrair da clássica formulação geral do decisionismo schmitteano
(“soberano é quem decide sobre o estado de exceção”) alguns macetes que muito
nos servirão ao propósito da elaboração de uma desconstrução sistemática do
paradigma do Estado neutral de cariz liberal, que parece voltar a emergir na
atual conjuntura estrutural, sobretudo em seara política e geopolítica.
Em Der Begriff des
Politischen, publicado em 1932,
Carl Schmitt, como de costume, começa expondo as razões que o motivaram a pensar
a política como uma pré-ordenação universal relativamente a categorias aparentemente
desencadeadoras de toda sorte de antagonismos, como, v.g. a moral (bom e mal),
o direito (justo e injusto) e a economia (lucrativo e não-lucrativo). Para
tanto, esboça um conceito de Estado que pretende superar a dicotomia
tipologicamente liberal entre Estado e sociedade civil, postulando que “o
conceito de Estado pressupõe o conceito do político. Estado é, segundo o uso da
linguagem hodierna, o status político de um povo organizado numa unidade
territorial” (SCHMITT, Carl. O Conceito
do Político, p. 41).
Com isso, começamos a entender que a política antecede as
questões de Estado, na medida em que estas últimas só aparecem como
possibilidades reais ou concretas de uma ordenação politicamente estabelecida.
Nesse sentido, a pretensão de neutralidade política, jurídica, econômica ou
religiosa típica de uma Weltanschauung
demo-liberal é reduzida a um artifício retórico destituído de qualquer consistência
argumentativa, posto que, em última instância, todos os conflitos estão
radicados na política, e a política não é neutra, em absoluto, conquanto
dependa de resultados favoráveis a um lado ou outro para ser efetivamente
implementada. É, inclusive, ancorado em tal raciocínio que Schmitt declarará,
mais adiante, o constitucionalismo liberal como uma concepção jurídica
essencialmente despolitizada, alheia a discussões políticas, lacuna que,
segundo o autor, incumbiria ao paradigma do Estado total, “que não conhece nada
que seja absolutamente apolítico”, colmatar, arrastando a política para setores
estatalmente disfuncionais, o que não significa, no entanto, que todos os
setores devem ser politizados, mas que a política funciona como garante dos
direitos mais elementares até mesmo em esferas em que não lhe compete intervir
diretamente.
Para Schmitt, a contraposição amigo-inimigo só pode ser
corretamente assimilada a partir da política concebida como conceito autônomo,
topograficamente localizado no interregnum
entre as categorias moral, jurídica, econômica, etc. e a ficção da
neutralidade, o que não significa que ela não se encontra imbricada com questões
éticas, eclesiásticas ou sócio-ideológicas. A tese central do autor é que o
político, enquanto ubiquidade, não deriva de fatores remotamente estabelecidos a
partir de um encadeamento causal-naturalístico, como querem os jusnaturalistas,
tampouco pode ser deduzido de critérios de estrita legalidade balizadores do
pensamento juspositivista. A política sequer é uma esfera específica do Estado,
a teor do que proclamam equivocadamente os administrativistas. O político se
erige em condição legítima de possibilidade da caracterização de um inimigo
público, na medida em que “o inimigo não é, portanto, o concorrente ou o
opositor em geral. O inimigo também não é o opositor privado que se odeia com
sentimentos de antipatia. O inimigo é, apenas, uma totalidade de homens pelo
menos eventualmente combatente, isto
é, combatente segundo uma possibilidade real, a qual se contrapõe a uma
totalidade semelhante. O inimigo é apenas o inimigo público, pois tudo aquilo que tem relação com uma tal totalidade de
homens, em particular, com todo um povo, se torna por isso público. O inimigo é
hostis, não inimicus em sentido mais amplo”, (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 55 e 56)
Em Der Nomos der Erde
im Volkerrecht des Jus Publicum Europaeum, nos deparamos com uma investigação
extremamente pormenorizada acerca do conflito entre terra firme e mar livre no contexto
de diferentes ordenações espaciais, dentre as quais se destaca o Direito das
Gentes inter-estatal europeu pela abolição do instituto medieval da iusta causa belli, que considerava
“justos” e, portanto, legítimos a desbravar e titularizar oficialmente as
terras colonizadas somente os membros da Ordo
cristã medieval em detrimento dos não-cristãos, que, por sua vez, não eram
contemplados pela aquisição originária do solo. Para Francisco de Vitória,
criador do conceito de Guerra Justa, o “inimigo” era sinônimo de criminoso, e
tão somente membros da Igreja possuíam legitimidade ativa para declarar guerra.
Citando Hugo Grotius, Carl Schmitt aduz que “desde Grotius que é em geral
reconhecido que a justiça não pertence ao conceito da guerra. As construções
que exigem uma guerra justa servem habitualmente, elas mesmas, um fim político.
Requerer de um povo politicamente uno que só faça guerra a partir de um
fundamento justo ou é algo inteiramente óbvio, se isso quiser dizer que só se
deve fazer guerra contra um inimigo real; ou esconde-se atrás disso o propósito
político de depositar em outras mãos a disposição sobre o jus belli e de encontrar normas de justiça sobre cujo conteúdo e
aplicação no caso singular não é o próprio Estado que decide, mas um qualquer
outro terceiro que, desta maneira, determina quem é o inimigo”. (SCHMITT, Carl.
O Conceito do Político, pgs. 90 e 91)
A superação dos direitos eclesiástico e estamental realizada nos séculos XVI e XVII por
juristas humanistas como Alberico Gentili, um dos precursores do Direito
Internacional Moderno, foi o marco da institucionalização do Direito de Guerra,
cuja compreensão viria a culminar no jus
publicum europaeum, de acordo com o qual todo e qualquer Estado soberano não
só detém a faculdade do jus ad bellum
como deve ser considerado como um igual perante os demais Estados soberanos que
em face dele disputam determinado território ou causa de que a guerra é objeto,
figurando como portador legítimo do status de justus hostis. O inimigo deixa de ser juridicamente recriminado em
prol da exigibilidade de uma postura inter-estatal equitativa ou igualitária, e
a própria guerra civil cede espaço à guerra estatal. “A guerra se converte,
pois, em ‘uma guerra em forma’ pelo mero fato de que se transforma em guerra
entre Estados europeus claramente delimitados enquanto ao espaço, em uma
disputa entre as entidades espaciais imaginadas como personae publicae que compõem sobre o solo europeu comum a
‘família’ europeia, e que têm assim a possibilidade de considerarem-se
reciprocamente como iuste hostes” –
tradução livre do espanhol. (SCHMITT, Carl. El
Nomos de la Tierra En el Derecho de Gentes del “Jus publicum europaeum", p.
135) Em Gentili, o Direito das Gentes é desteologizado, e, no lugar da Igreja
Cristã, o Estado secular reivindica para si o monopólio da determinação
paradigmática de amigo-inimigo, o que se expressa com clareza meridiana no
famigerado brocardo: Silete theologi in
munere alieno. É nesse sentido que
Schmitt obtempera que o inimigo deve ser compreendido, em essência, como hostis, e jamais como inimicus, haja vista que, para os
escopos do jus gentium, a figura do
inimigo há de coincidir necessariamente com a figura do estrangeiro ou
representante político de um grupamento territorial político-paradigmaticamente
estruturado.
Interessante analogia, realizada por Carl Schmitt em Politische Theologie, serve ao escopo de
elucidar a transição da Idade Média cristã de matriz teológico-metafísica para
o paradigma do Estado de Direito Moderno. Tal consiste em identificar o
instituto do milagre característico da cristandade medieval com o estado de
exceção. É precisamente aqui que, segundo Schmitt, reside a chave para a
compreensão da evolução do pensamento político-filosófico, nos seguintes
termos: “todos os conceitos centrais da moderna teoria do Estado são conceitos
teológicos secularizados. Isso é certo não só em razão de sua evolução
histórica, enquanto foram transferidos da teologia à teoria do Estado,
convertendo-se, por exemplo, o Deus onipotente no legislador todo-poderoso, mas
também em razão de sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é
imprescindível para a consideração sociológica desses conceitos. O estado de
exceção tem na jurisprudência significação análoga ao milagre da teologia. Só
tendo consciência dessa analogia é possível conhecer a evolução das ideias
filosófico-políticas nos últimos séculos. Porque a ideia do moderno Estado de
Direito a par do deísmo, com uma teologia e uma metafísica que baniram do mundo
o milagre e não admitem a violação com caráter excepcional das leis naturais
implícita no conceito do milagre é produzido por intervenção direta do soberano
no ordenamento jurídico vigente. O racionalismo da época do Iluminismo não
admite o caso excepcional em nenhuma de suas formas. Por isso a convicção
teísta dos escritores conservadores da contrarrevolução puderam fazer o ensaio
de fortalecer ideologicamente a soberania pessoal do monarca com analogias retiradas
da teologia teísta” –tradução livre do espanhol (SCHMITT, Carl. Teología Política, vol. 2, p. 37)
Dessarte, em Schmitt, é ao titular do poder soberano, e não
mais à Igreja Medieval, que compete decidir em última instância a respeito do
estado de exceção, é dizer, acerca da suspensão da vigência das instituições
jurídicas durante o período de guerra. Também é ele, como representante popular
por excelência, o Guardião da Constituição, ao contrário do que assinala o
normativismo kelseneano, que, a seu turno, atribui à Corte Constitucional,
órgão de cúpula da República de Weimar, legitimidade para realizar o controle
de constitucionalidade concentrado, um dos principais corolários da tese
sufragada em Jurisdição Constitucional.
Embora historicamente o normativismo tenha logrado maior
êxito do que o decisionismo em matéria fática, a contribuição decisionista se
revela mais defensável, sobretudo internacionalmente, por dar maior ênfase à
soberania estatal em tempos em que esta última se torna alvo de um processo de
relativização inclinado ao atendimento de interesses globalistas presididos
hegemonicamente por superpotências transnacionais. De qualquer sorte, importa
aqui perceber que, diferentemente do direito medieval, o direito moderno confere
ao inimigo um caráter heurístico, eliminando a possibilidade de este ser
reconhecido privadamente. Isto porque um inimigo é obrigatoriamente um inimigo
do todo de um grupamento territorial, e não de um indivíduo atomizado,
destacado do tecido da realidade jurídico-política de uma comunidade
espacialmente delimitada.
Distintamente de Hans Kelsen, por um lado, cujo intento de
construir uma ciência do direito que pudesse ser considerada neutra
talqualmente a matemática e a biologia, obliterando quaisquer resíduos moral,
político e religioso, é dizer, rompendo com o “sincretismo metodológico” e, de
conseguinte, com a possibilidade de se deduzir o ser do dever ser – ver A
Teoria Pura do Direito -, e Jürgen Habermas, por outro, que atribui ao
procedimento de tomada de decisões coletivas, ou, mais especificamente, ao
princípio da maioria, um caráter neutro, supostamente hábil a garantir, a um só
tempo, o exercício das autonomias pública e privada pelos co-legisladores
(cidadãos detentores do status de membros de uma comunidade jurídica
simultaneamente autores e destinatários das normas que eles se dão a si mesmos)
de modo que o direito das minorias não seja violado – ver Direito e Democracia:
Entre Faticidade e Validade e A Inclusão do Outro -, Carl Schmitt não se deixa
iludir pela quimera da neutralidade. A Kelsen podemos objetar, com lastro no
decisionismo schmitteano, que é a política enquanto possibilidade concreta de
desencadeamento de litigiosidades, e não uma “norma hipotética fundamental” (Grundnorm) imaginária, que justifica e mobiliza, atual e
potencialmente, um ordenamento jurídico. Qualquer questão é, primariamente, uma
questão política, e apenas secundariamente uma questão jurídica, social ou
religiosa. Da mesma monta, a guerra só pode ser adequadamente compreendida como
possibilidade de determinação do inimigo real, motivo pelo qual há de ser
deflagrada por razões de natureza política que só mais tarde passará a submeter
as potências beligerantes ao crivo do jus
belli e eventualmente encerradas mediante Tratado de Paz. Podemos extrair
do seguinte escólio uma clara demonstração de como o político passa não só a
habitar o centro magnético de questões morais, religiosas, econômicas, etc.,
como também a determinar em caráter decisivo todas as questões envolvendo
qualquer uma dessas categorias:
“Cada contraposição religiosa, moral, económica, étnica ou
outra transforma-se numa contraposição política quando é suficientemente forte
para agrupar efectivamente os homens segundo amigo e inimigo. O político não
está no combate ele mesmo, o qual, por seu lado, tem as suas próprias leis
técnicas, psicológicas e militares, mas, como se disse, numa relação
determinada por esta possibilidade real, no claro reconhecimento da situação
própria, determinada por ela, e na tarefa de diferenciar correctamente amigo e
inimigo. Uma comunidade religiosa que, enquanto tal, faz guerras, seja contra
os membros de outras comunidades religiosas, seja outro tipo de guerras, é,
para além de comunidade religiosa, uma unidade política (...) O mesmo vale para
uma associação de homens que repouse numa base económica, por exemplo, para um
grupo industrial ou para um sindicato. Também uma ‘classe’, no sentido marxista
do termo, deixa de ser algo puramente económico e se torna numa grandeza
política quando alcança este ponto decisivo, isto é, quando leva a sério a
‘luta’ de classes, quando trata o opositor de classe como inimigo real e o
combate, seja como Estado contra Estado, seja numa guerra civil no interior de
um Estado. O combate real já não se joga então, de um modo necessário, de
acordo com leis económicas, mas tem – juntamente com os métodos de combate em
sentido mais estrito – as suas necessidades políticas, e orientações,
coligações, compromissos, etc. Se, no interior de um estado, o proletariado se
apoderar do poder político, então terá surgido precisamente um Estado
proletário que não é menos uma formação política do que um Estado nacional, um
Estado sacerdotal, um Estado comercial ou um Estado de soldados, um Estado de
funcionários ou qualquer outra categoria de unidade política. Se toda a
humanidade chegar a agrupar-se como amigo e inimigo em Estados proletários e
capitalistas, segundo a contraposição entre proletários e burgueses, e se nisso
desaparecerem todos os outros agrupamentos amigo-inimigo, mostra-se então toda
a realidade do político mantida por estes conceitos que, à partida, aparentam ser
‘puramente’ económicos. Se a força política de uma classe ou de outros grupos
dentro de um povo for apenas até ao ponto de poder impedir qualquer guerra que
seja feita em relação ao exterior, sem ela mesma ter a capacidade ou a vontade
de assumir o poder estatal de diferenciar, a partir de si, amigo e inimigo e
de, caso seja preciso, fazer guerra, então a unidade política está destruída”.
(SCHMITT, Carl. O Conceito do Político,
pgs. 69 á 71)
Impossível deixar de notar que na concepção schmitteana, os
conceitos de “guerra”, “soberania” e “amigo-inimigo” são entremeados e
coordenados pelo conceito do político, que, dotado de um caráter universal, articula
a partir do vértice todas as mobilizações internas e externas à unidade
política, dentro da qual se revela como eventualidade real. Daí a
plausibilidade da tese que confere ao Chefe de Estado, titular da soberania
política, determinar, em nome da coletividade por ele representada, quem é o
inimigo a ser combatido, de modo que qualquer tentativa no sentido de dissociar
a política da moralidade, religiosidade ou qualquer outra categoria da vida
ativa, sobeja paradigmaticamente desnaturada. Especificamente no final da
passagem retro-transcrita, percebemos que uma determinada unidade política só
estará sepultada em definitivo quando a guerra e, de conseguinte, a
possibilidade de contrapôr amigo e inimigo já não for mais factível no marco de
uma inter-estatalidade utópica que supere em peso a mera pretensão de uma
humanização do Direito Internacional Público. Isso porque “um povo
politicamente existente não pode, portanto, renunciar a diferenciar amigo e
inimigo, num caso dado, através de uma determinação própria e por sua própria
conta e risco” (SCHMITT, Carl. O Conceito
do Político, p. 92)
Não obstante o esforço despendido por Immanuel Kant no
sentido de postular, no século XVIII, antes mesmo da criação da praticamente natimorta
Liga das Nações, uma concepção filosófica da Paz Perpétua na qual pudesse
basear a expectativa de criação de uma federação de Estados soberanamente
instituídos (foedus pacificum) atados
por um liame de moralidade – é dizer, independentemente de quaisquer
instituições jurídicas capazes de fazerem valer as consequências do ilícito
internacional -, enfrentamos hoje, com a Organização das Nações Unidas,
problemas nucleares que transformam o ato de pensar um mundo sem guerra em fruto
de especulações pouco aproveitáveis desde uma perspectiva teórico-prática. Consoante
sentencia acertadamente Carl Schmitt, Kant era filósofo, e não jurista. Seu
idealismo possui valor contemplativo, mas nada comparável ao realismo
schmitteano em matéria de solução de conflitos. Juridicamente, a Paz Perpétua
kantinana merece tanta credibilidade quanto a Utopia de Thomas Morus, na medida
em que acredita poder subsumir a totalidade das questões políticas à formulação
geral do imperativo categórico, que, transplantada para o âmbito do Direito
Internacional Público, significa que a máxima orientadora da conduta de um
Estado determinado deve ser compatível com as máximas norteadoras das condutas da
universalidade dos demais Estados soberanos, ou, nas palavras do autor, “age de
tal modo que possas querer que a tua máxima se torne uma lei universal (seja
qual for o fim que ele queira)” (KANT, Immanuel. A Paz Perpétua: um Projeto
Filosófico, p. 41), tentativa inócua de justificar moralmente e não
politicamente as relações inter-estatais. A inexequibilidade de tal postulado reveste-se
daquele tipo de auto-evidência que dispensa maiores comentários.
Outra distinção importante para a delimitação conceitual de
uma unidade político-paradigmática cujo representante soberano titulariza o
direito de declaração de hostis, seja
pela inobservância do conteúdo de um tratado internacional, seja pela violação
escancarada de sua soberania política por terceiros, concerne a uma confusão
introduzida pelo pluralismo anglo-saxônico no âmbito da Teoria do Estado, de
acordo com o qual o que enseja o agrupamento de indivíduos em um corpo social
unificado não é um único, mas vários fatores confluentes: política, religião,
moral, sociedade (entendida aqui em acepção estritamente
liberal-individualista), cultura, etc. Tal concepção descentralizante obstaculiza
a apreensão existencial-paradigmática do conceito do político na medida em que deposita
a ratio essendi do agrupamento em uma
pretensa “associação” (governamental
association) de indivíduos livres, e não em uma unidade política no sentido
forte, paradigmático. Schmitt contrapõe a essa assertiva a tese de que, não por
acaso, ela tende a degradar naquela espécie de federalismo societário que vê na
máquina estatal um mero instrumento a serviço da satisfação de necessidades
individuais. Para Schmitt, “(...) não há nenhuma ‘sociedade’ ou ‘associação’
política, há apenas uma unidade política, uma ‘comunidade’ política. A
possibilidade real do agrupamento de amigo e inimigo é suficiente para criar,
para além daquilo que é meramente associativo-societal, uma unidade
paradigmática, a qual é algo especificamente diferente e algo decisivo em relação
às restantes associações. Se esta unidade, mesmo numa eventualidade, faltar, falta
também o próprio político”. (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 82 e 83)
Releva acrescentar, a título de conclusão, que, embora
academicamente vilipendiado e sub-valorizado, o decisionismo de Carl Schmitt
permanece mais atual do que jamais logrou ser numa época em que a política é
vista, não como ubiquidade fundante a penetrar o cerne de questões publicamente
debatidas, mas como um conceito puramente pragmático de justificabilidade do individualismo
liberal, no seio do qual manobras abstratas prevalecem sobre a possibilidade real
de contraposição de amigo e inimigo a partir de critérios estritamente
político-paradigmáticos. Não obstante a insistência por parte de setores
específicos da sociedade civil em camuflar a necessidade de uma definição de
amigo e inimigo, é imprescindível admiti-la, ainda que para fins de
ressoberanização de Estados que vêm perdendo sua influência decisória na comunidade
internacional hodierna. Tal contraposição só pode ser efetuada se se considera
os grupamentos sociais como unidades políticas soberanas territorialmente
delimitadas que não podem nem devem se furtar de defender seus interesses através
das armas, hipótese em que serão consideradas reciprocamente como justus hostis pelo Direito de Guerra
inter-estatal. Sobeja, outrossim,
infundado pretender separar as categorias moral, jurídica, cultural, religiosa,
etc. de seu substrato político, haja vista que, conforme examinado alhures,
onde há combate de qualquer natureza, há política, e somente a política pode
servir, em última instância, como garante dos direitos fundamentais, ao
contrário do que sustentam Kelsen e Habermas, por um lado, enfatizando a
neutralidade, e Kant por outro, enfatizando a moralidade.
SCHMITT, Carl. O
Conceito do Político. Edições 70: Lisboa, 2015.
SCHMITT, Carl. El
Nomos de la Tierra En el Derecho de Gentes del “Jus publicum europaeum”.
Editorial Struhart y Cía: Buenos Aires.
SCHMITT, Carl. Teología
Política, vol. 2. Editorial Trotta: Madrid, 2009.
KANT, Immanuel. A Paz Perpétua: um Projeto Filosófico. Lusofia:
Covilhã, 2008.