Por: Gustavo Aguiar
“Só os mortos conhecem o fim da guerra” - Platão
Na década de 60, o auge do movimento hippie fez despontar,
em meio aos protestos contra a Guerra do Vietnã, um novo tipo de homem: o homem
pacifista, cujo espírito anti-beligerante, progressista e social-democrata (com
nítidos rasgos trotskistas) serviria de argamassa para a consolidação de uma
redefinição do status revolucionário
instituído pela velha esquerda proletária no século XIX. Longe de pretender justificar
os crimes marciais perpetrados pelos destacamentos yankees nas aldeias e vilas norte-vietnamitas ou mesmo os objetivos
desprezíveis que levaram Lyndon Johnson e Richard Nixon a despacharem tanques e
helicópteros para as planícies da indo-china, o presente artigo quer evidenciar
a maneira pela qual a mentalidade da nova esquerda (new-left) acabou engendrando
um pensamento diametralmente oposto aos dizeres que enfeitavam os cartazes na
conjuntura subversiva dos protestos. Hoje, os mesmos dizeres são usados como
instrumentos de desestabilização a serviço de hiperpotências neocolonialistas
ao redor do globo.
Quando ouvimos jargões humanitários do tipo “faça amor, não
faça guerra”, “parem a guerra!”, ou, ainda, “por que não dar uma chance para a paz?”,
somos quase que instantaneamente hipnotizados pela inocência e pureza ética que
tais palavras parecem irradiar. Ledo engano! A técnica da prestidigitação, amplamente
estudada em psicologia das massas, constitui um poderoso mecanismo de
alienação, principalmente quando utilizado por oradores articulados, mestres em
esconder suas intenções mefistofélicas por debaixo de uma fraseologia
aparentemente despretensiosa. Contudo, basta uma análise perfunctória das orações
supra-citadas para percebermos que se tratam de reproduções ocas do mesmo
material propagandístico com que são feitos os slogans em uma sociedade de consumo. O que as torna ainda mais palatáveis
é o contexto em que foram proferidas. Se, por um lado, a invasão
norte-americana no Vietnã pode ser ironicamente interpretada como uma maneira
pouco ortodoxa de levar a “democracia” a povos oprimidos por “regimes
totalitários”, de forçá-los a aceitar uma realidade que não é a sua
(basicamente o mesmo que ocorre hoje na Síria, Líbia, Iraque e Aferganistão,
diga-se de passagem), por outro, o modo como as manifestações pacifistas contra
o massacre vietnamita foram conduzidas nos Estados Unidos oportunizou o
nascimento de uma tendência político-ideológica ainda mais perversamente
dissimulada do que os tipos de totalitarismo expansionista de que, até então, a
História teve notícia. Em capítulo da obra Como
a Não-violência Protege o Estado, Peter Geoderloos relata:
“A afirmação que o movimento pacifista estadunidense acabou
com a guerra contra o Vietnã possui um usual conjunto de falhas. As críticas
foram bem feitas por Ward Churchill e outros, então somente irei resumi-las. Os
ativistas pacifistas ignoram, com uma imperdoável hipocrisia, que três a cinco
milhões de indochineses morreram na luta contra o exército estadunidense; que
milhares de tropas americanas foram mortas e outras milhares feridas; que
outras tropas desmoralizadas pelo derramamento de sangue tornaram-se extremamente
ineficazes e revoltosas; e que os Estados Unidos estavam perdendo capital
político (e tornando-se fiscalmente falidos) a um ponto em que os políticos
pró-guerra começaram a pedir por uma retirada estratégica (especialmente depois
que a Ofensiva do Tet provou que a
guerra era “invencível”, como nas palavras de muitos daquele tempo). O governo
dos Estados Unidos não foi forçado a retirar-se pelos protestos pacíficos – ele
foi derrotado política e militarmente. Como uma evidência disto, Churchill cita
a vitória do republicano Richard Nixon, e a falta de até mesmo um candidato
antiguerra do Partido Democrata, em 1968, no auge do movimento antiguerra.
Poderia-se acrescentar a isso a reeleição de Nixon em 1972, após quatro anos de
intensificação do genocídio, para demonstrar a fraqueza do movimento pacifista
em intervir nas decisões do poder. De fato, o movimento pacifista do princípio
dissolveu-se junto à retirada das tropas estadunidenses (finalizada em 1973). O
movimento foi menos receptivo para aceitar o fato de que a maior campanha de
bombardeio jamais vista na história, que mirava civis, se intensificou após a
retirada das tropas, ou que continuou a ocupação do Vietnã do Sul através de
uma ditadura militar financiada e treinada pelos Estados Unidos. Em outras
palavras, o movimento se retirou (e recompensou Nixon com uma reeleição) uma
vez que americanos, e não vietnamitas, estavam longe do perigo. O movimento
pacifista americano falhou em trazer a paz. O imperialismo norte-americano
continuou imbatível , e, apesar de sua estratégia militar ter sido derrotada
pelos vietnamitas, os EUA ainda assim cumpriram com seus objetivos políticos
gerais em seu devido tempo, precisamente por causa do fracasso do movimento
pacifista em realizar qualquer mudança interna”.
O pacifismo só surge como negação das consequências hediondas
da guerra para encobrir o fracasso de suas próprias premissas e a superficialidade
de suas propostas, que, por algum motivo, nunca chegaram a cristalizar um repertório
conceitual substancialmente delimitado. Um dos segredos por trás da
aceitabilidade da doutrina pacifista (se é que podemos chamá-la assim) é
justamente a hipostatização de conceitos indeterminados, a atribuição de
substância a vocábulos semanticamente flexíveis, que, fora dos domínios da
ficção utópica, não designam absolutamente nada. Ao contrário da experiência
nas trincheiras, da qual o alemão Ernst Jünger, expoente máximo da cognominada
Geração da Guerra, foi testemunho, o pacifismo se mantém o tempo todo na
abstração, talvez porque não queira mesmo ser descoberto com receio de parecer
desagradável ao juízo de homens que fizeram história ao invés de desperdiçarem
suas vidas confabulando infrutiferamente na vã esperança de eliminarem o mau da
face da Terra. A estes últimos, Jünger responde:
“Foi a guerra que fez dos homens e dos tempos aquilo que
são. Nunca uma raça como a nossa descera à arena da Terra para disputar entre
si o poder de dominar a época. Porque uma geração transpôs um portal tão
sombrio e tão portentoso como foi esta guerra [a Primeira Grande Guerra], para
ressurgir na luz da vida. Eis o que não podemos negar, ainda que alguns o
quisessem: o combate, pai de todas as coisas, é também nosso pai. Foi ele que
nos martelou, cinzelou e temperou, para fazer de nós o que somos. E enquanto a roda
da vida vibrar em nós, esta guerra será sempre o eixo em torno do qual ela
gira. Talhou-nos para o combate, e combatentes seremos enquanto existirmos”.
Verdade seja dita: há tempos de paz e tempos em que a chama
da guerra precisa arder no coração dos homens para lembrá-los de que eles ainda
vivem. Mas, se arrastarmos tal discussão para o âmbito ideológico, perceberemos
que não há nada de intrinsecamente extraordinário na paz que justifique fazer
dela uma bandeira, muito menos uma bandeira política. Na medida em que vamos
avançando em nossa análise, notamos com clareza meridiana que o que levou os
partidários da contracultura hippie a procederem de tal maneira, no fundo, não
teve absolutamente nada a ver com o Vietnã, mas sim com a guerra em acepção
genérica. Em outras palavras: o pacifismo não ataca a raiz do mal, porque
sequer depende de um contexto determinado para emergir; ataca os sintomas.
Pouco espanta que ninguém nunca tenha discorrido
profundamente sobre uma “metafísica da paz”, mas há quem escreveu páginas e
mais páginas sobre a Metafísica da Guerra: este é o barão italiano Julius
Evola, que, apesar de nunca ter combatido nas trincheiras da Primeira Guerra
Mundial como Jünger, foi ferido na coluna vertebral quando de sua estada em
Viena por ocasião de um bombardeio à cidade, tendo os membros inferiores
paralisados. O que podemos extrair de tal acontecimento? Que por mais trágicas
que tenham sido as consequências da guerra para Evola, isto nunca o impediu de estudar
suas repercussões nas mais diversificadas tradições etno-culturais. A guerra serve
como fonte inesgotável de inspiração para inúmeros pensadores influentes
através da história, tanto para os que a vivenciaram in loco quanto para os que se limitaram a contemplá-la desde uma
perspectiva histórico-filosófica.
Em Metafísica da
Guerra, Evola tece críticas contundentes acerca do processo de
esmorecimento ao qual foi sendo paulatinamente submetido o arquétipo do Herói
nas sociedades democráticas, terreno fértil para a disseminação do discurso
pacifista e anti-bélico. Podemos tomar tais advertências mais como um vitupério
do que como uma simples constatação:
“Como estão as coisas, a este respeito, no mundo das
‘democracias’? Eles querem agora, pela terceira vez neste século, conduzir a
humanidade à guerra em nome da ‘guerra contra a guerra’. Isso exige homens para
lutar esta guerra ao mesmo tempo em que a criticam. Exige heróis que proclamem
o pacifismo como o mais alto ideal. Exige guerreiros ao mesmo tempo que fez
‘guerreiro’ sinônimo de atacante e criminoso e, uma vez que reduziu a base
moral da ‘guerra justa’ a uma operação policial de grande escala, reduziu
[também] o significado do espírito ao de combate para defender a si mesmo como
último recurso” – tradução livre do inglês. (EVOLA, Julius. Metaphysics of War, pgs. 135 e 136)
Este poderoso excerto do mestre italiano nos revela mais do
que aparenta. Evola está dizendo aqui que a democracia moderna é um teatro cujo
enredo anti-bélico constitui-se quase que exclusivamente de contradições. Ora,
não seria o moralismo pacifista uma espécie de guerra contra a guerra, algo que
procura desesperadamente um sentido de auto-justificabilidade que lhe permita
seguir legislando em causa própria? De onde provém o ímpeto anti-guerra senão
da guerra mesma ou da vontade indomável de guerrear? É neste sentido que advogamos
a tese de que a mentalidade pacifista vive em perpétua auto-negação. Com
efeito, o niilismo parece impregnar tão simbioticamente os princípios que regem
o pensamento pacifista ao ponto de colocá-lo em um labirinto sem saída.
Ao contrário da esquerda marxista, possuidora de um caráter
visivelmente belicoso que reflete, em sua melhor luz, a ideia de luta de
classe, a nova esquerda se dedica inteiramente à proteção dos “fracos e
oprimidos pelo sistema”. Se antes o proletariado industrial encarnava os piores
pesadelos do burguês detentor da propriedade privada dos meios de produção,
hoje o verdadeiro trabalhador encontra-se desamparado em virtude de uma
proteção cada vez maior conferida a toda sorte de pessoas fracas de corpo,
mente e, sobretudo, de caráter. Assistimos, inertes, hordas de hominídeos
reivindicando para si uma atenção que nunca mereceram em nome de uma causa que jamais
obteve a concreção necessária para ser considerada efetivamente defensável.
Em capítulo dedicado ao estudo dos fracassos do pacifismo
inglês de sua obra A Rebelião das Massas, o proeminente filósofo e jornalista
espanhol Jose Ortega y Gasset nos brinda com o seguinte escólio: “Como quase
sempre acontece, o desfeito maior do pacifismo inglês – e, em geral, dos que se
apresentam como titulares do pacifismo – tem sido subestimar o inimigo. Esta
subestima lhes inspirou um diagnóstico falso. O pacifista vê na guerra um dano,
um crime ou um vício. Mas esquece que, antes disso e acima disso, a guerra é um
enorme esforço que os homens fazem para resolver certos conflitos. A guerra não
é um instinto, mas um invento. Os animais a desconhecem e é pura instituição
humana, como a ciência e a administração. Ela levou a um dos maiores
descobrimentos, base de toda a civilização: ao descobrimento da disciplina.
Todas as demais formas de disciplina procedem da primigênia, que foi a
disciplina militar. O pacifismo está perdido e converte-se em nula beataria se
não tem presente que a guerra é uma genial e formidável técnica de vida e para
a vida”. (ORTEGA y GASSET, Jose. A Rebelião
das Massas, pgs. 299 e 300)
Razão assiste a Ortega y Gasset ao sublinhar a disciplina
militar como um dos principais contributos da guerra para a humanidade. Tais
dizeres podem soar abstrusos ou mesmo refratários em uma época que perdeu a noção
do que significa viver em uma sociedade disciplinarmente organizada. Os postos
de comando e obediência na atualidade desempenham uma função meramente simbólica
ou de referência, mesmo no bojo da hierarquia militar, na qual deitam raízes. O
impacto da “des-disciplinarização” recai em peso sobre o nível de coesão
social. Ao desnuclearizar progressivamente os focos de irradiação do poder
político e redistribui-lo entre uma massa amorfa de indivíduos
heterogenicamente determinados (homem-massa, em terminologia de Ortega y
Gasset), as instituições democráticas cumprem um enorme desserviço às virtudes
cívicas consagradas tradicionalmente. Na prática, aniquila-se em duas centúrias
o que a tradição levou pelo menos seis milênios para edificar: grupamentos
sociais rigidamente solidificados que não só enxergavam a guerra como veículo
de transcendência do espírito, a concretização da Paz de Deus, como também
descobriam no campo de batalha um novo sentido para suas vidas, um modo se
tornarem o que nunca puderam ser em tempos de paz.
Neste sentido, Julius Evola
aduz que “partindo do que está abaixo para o que está acima, pode-se dizer,
portanto, que a necessidade inevitável da justiça social na arena internacional
de se revoltar contra a hegemonia das nações encarnando a ‘civilização dos
comerciantes’ pode ser o [fator] determinante imediato da guerra. Mas aquele
que luta uma guerra em terreno tal pode encontrar nele a ocasião para que
realize, simultaneamente, uma experiência mais elevada, ou seja, lutando e
sendo um herói, não tanto como soldado, mas como guerreiro, um homem que luta e
ama o combate não tanto no interesse das conquistas materiais em nome do seu Rei
ou da sua tradição. E, para além dessa fase, num estágio sucessivo, ou de uma
classe superior, esta mesma guerra pode se tornar um meio para alcançar a guerra
em seu sentido supremo, como ascetismo e “paz de Deus”, como culminação do
significado da vida em geral, sobre o qual foi dito: vita est milita super terram. Somando-se a tudo isso – ele pode ser
adicionado – não há dúvida de que o impulso e a capacidade de sacrifício são
muito superiores em quem reconhece esse significado supremo da guerra em
comparação com aquele para quem ela significa um meio de subordinação. E até
mesmo este plano mundano da lei terrena pode se encontrar com a lei de Deus
quando o mais trágico que exige pode ser feito em nome da grandeza de nações
tão brilhantes em sentido último cuja acção constitui, no entanto, a superação
da humanidade, desprezo pela existência mesquinha das ‘planícies’, a tensão
que, em culminações supremas da vida, significa escolher algo que é mais do que
a vida” – tradução livre do inglês. (EVOLA, Julius. Metaphysics of War, pgs. 92 e 93)
De todo o acima exposto, conclui-se que todos os esforços da
mentalidade pacifista de se impor sobre o significado espiritualmente transcendente
da guerra (e por guerra não nos restringimos ao contexto específico do Vietnã) acabaram
instituindo uma nova tendência, que, em sua anti-beligerância, redefiniu os
contornos semânticos da militaridade, fornecendo as bases sobre as quais se
estribam os postulados gerais da nova esquerda. Hoje, conflitos de proporções
bélicas são travados sob a égide de jargões humanistas, ao passo que nossos
ancestrais nunca dependeram de tal maquiagem para redescobrirem a si mesmos no
campo de batalha. A lição que podemos extrair dos escritos de Ernst Jünger e
Julius Evola em contraste aos apelos sentimentais do movimento pacifista é que não
importa quando uma guerra explode ou quantas vítimas ela carregue para a
sepultura: o heroísmo será sempre uma virtude superior ao humanismo. Tal se
verifica no fato de que a paz nunca constituiu fonte de inspiração para grandes
homens. Estes são moldados em meio às trincheiras, ou no pensamento que nos
ajuda a deslindar de maneira percuciente o que ocorre dentro delas. A Guerra do
Vietnã foi o período histórico de transição da herança cultural legada a nós
pela Geração da Guerra para as excrescências teratológicas do que poderíamos
denominar “Geração da Paz”, que, no afã de proteger os “fracos” e os “oprimidos”
da “ameaça nuclear” e das incursões militares, até agora não contribuiu em nada,
exceto para a criação de uma raça sub-humana de miseráveis espécimes acovardados.
REFERÊNCIAS:
EVOLA,
Julius. Metaphysics of War. Arktos Media: United Kingdom, 2011.
GEODERLOOS, Peter. Como a Não-violência Protege o Estado.
Capítulo: A não-violência é ineficaz, disponível em: http://www.deriva.com.br/?p=400
JÜNGER, Ernst. A Guerra Como Experiência Interior,
disponível em: http://legio-victrix.blogspot.com.br/2012/03/guerra-como-experiencia-interior.html
JÜNGER, Ernst. A Mobilização Total. Natureza Humana: 2002.
ORTEGA y GASSET, Jose. A Rebelião das Massas. Ed. Ridendo
Castigat Mores: 2001.
Há quem atribua a Machiavel o que igualmente Charles de Montesquieu constatou: "Somente o poder limita o poder"
ResponderExcluirHá quem atribua a Machiavel o que igualmente Charles de Montesquieu constatou: "Somente o poder limita o poder"
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