domingo, 3 de janeiro de 2016

Pacifismo pra Quem? – Uma Ode ao Deus da Guerra

Por: Gustavo Aguiar


“Só os mortos conhecem o fim da guerra” - Platão

Na década de 60, o auge do movimento hippie fez despontar, em meio aos protestos contra a Guerra do Vietnã, um novo tipo de homem: o homem pacifista, cujo espírito anti-beligerante, progressista e social-democrata (com nítidos rasgos trotskistas) serviria de argamassa para a consolidação de uma redefinição do status revolucionário instituído pela velha esquerda proletária no século XIX. Longe de pretender justificar os crimes marciais perpetrados pelos destacamentos yankees nas aldeias e vilas norte-vietnamitas ou mesmo os objetivos desprezíveis que levaram Lyndon Johnson e Richard Nixon a despacharem tanques e helicópteros para as planícies da indo-china, o presente artigo quer evidenciar a maneira pela qual a mentalidade da nova esquerda (new-left) acabou engendrando um pensamento diametralmente oposto aos dizeres que enfeitavam os cartazes na conjuntura subversiva dos protestos. Hoje, os mesmos dizeres são usados como instrumentos de desestabilização a serviço de hiperpotências neocolonialistas ao redor do globo.   

Quando ouvimos jargões humanitários do tipo “faça amor, não faça guerra”, “parem a guerra!”, ou, ainda, “por que não dar uma chance para a paz?”, somos quase que instantaneamente hipnotizados pela inocência e pureza ética que tais palavras parecem irradiar. Ledo engano! A técnica da prestidigitação, amplamente estudada em psicologia das massas, constitui um poderoso mecanismo de alienação, principalmente quando utilizado por oradores articulados, mestres em esconder suas intenções mefistofélicas por debaixo de uma fraseologia aparentemente despretensiosa. Contudo, basta uma análise perfunctória das orações supra-citadas para percebermos que se tratam de reproduções ocas do mesmo material propagandístico com que são feitos os slogans em uma sociedade de consumo. O que as torna ainda mais palatáveis é o contexto em que foram proferidas. Se, por um lado, a invasão norte-americana no Vietnã pode ser ironicamente interpretada como uma maneira pouco ortodoxa de levar a “democracia” a povos oprimidos por “regimes totalitários”, de forçá-los a aceitar uma realidade que não é a sua (basicamente o mesmo que ocorre hoje na Síria, Líbia, Iraque e Aferganistão, diga-se de passagem), por outro, o modo como as manifestações pacifistas contra o massacre vietnamita foram conduzidas nos Estados Unidos oportunizou o nascimento de uma tendência político-ideológica ainda mais perversamente dissimulada do que os tipos de totalitarismo expansionista de que, até então, a História teve notícia. Em capítulo da obra Como a Não-violência Protege o Estado, Peter Geoderloos relata:

“A afirmação que o movimento pacifista estadunidense acabou com a guerra contra o Vietnã possui um usual conjunto de falhas. As críticas foram bem feitas por Ward Churchill e outros, então somente irei resumi-las. Os ativistas pacifistas ignoram, com uma imperdoável hipocrisia, que três a cinco milhões de indochineses morreram na luta contra o exército estadunidense; que milhares de tropas americanas foram mortas e outras milhares feridas; que outras tropas desmoralizadas pelo derramamento de sangue tornaram-se extremamente ineficazes e revoltosas; e que os Estados Unidos estavam perdendo capital político (e tornando-se fiscalmente falidos) a um ponto em que os políticos pró-guerra começaram a pedir por uma retirada estratégica (especialmente depois que a Ofensiva do Tet provou que a guerra era “invencível”, como nas palavras de muitos daquele tempo). O governo dos Estados Unidos não foi forçado a retirar-se pelos protestos pacíficos – ele foi derrotado política e militarmente. Como uma evidência disto, Churchill cita a vitória do republicano Richard Nixon, e a falta de até mesmo um candidato antiguerra do Partido Democrata, em 1968, no auge do movimento antiguerra. Poderia-se acrescentar a isso a reeleição de Nixon em 1972, após quatro anos de intensificação do genocídio, para demonstrar a fraqueza do movimento pacifista em intervir nas decisões do poder. De fato, o movimento pacifista do princípio dissolveu-se junto à retirada das tropas estadunidenses (finalizada em 1973). O movimento foi menos receptivo para aceitar o fato de que a maior campanha de bombardeio jamais vista na história, que mirava civis, se intensificou após a retirada das tropas, ou que continuou a ocupação do Vietnã do Sul através de uma ditadura militar financiada e treinada pelos Estados Unidos. Em outras palavras, o movimento se retirou (e recompensou Nixon com uma reeleição) uma vez que americanos, e não vietnamitas, estavam longe do perigo. O movimento pacifista americano falhou em trazer a paz. O imperialismo norte-americano continuou imbatível , e, apesar de sua estratégia militar ter sido derrotada pelos vietnamitas, os EUA ainda assim cumpriram com seus objetivos políticos gerais em seu devido tempo, precisamente por causa do fracasso do movimento pacifista em realizar qualquer mudança interna”.   

O pacifismo só surge como negação das consequências hediondas da guerra para encobrir o fracasso de suas próprias premissas e a superficialidade de suas propostas, que, por algum motivo, nunca chegaram a cristalizar um repertório conceitual substancialmente delimitado. Um dos segredos por trás da aceitabilidade da doutrina pacifista (se é que podemos chamá-la assim) é justamente a hipostatização de conceitos indeterminados, a atribuição de substância a vocábulos semanticamente flexíveis, que, fora dos domínios da ficção utópica, não designam absolutamente nada. Ao contrário da experiência nas trincheiras, da qual o alemão Ernst Jünger, expoente máximo da cognominada Geração da Guerra, foi testemunho, o pacifismo se mantém o tempo todo na abstração, talvez porque não queira mesmo ser descoberto com receio de parecer desagradável ao juízo de homens que fizeram história ao invés de desperdiçarem suas vidas confabulando infrutiferamente na vã esperança de eliminarem o mau da face da Terra. A estes últimos, Jünger responde:

“Foi a guerra que fez dos homens e dos tempos aquilo que são. Nunca uma raça como a nossa descera à arena da Terra para disputar entre si o poder de dominar a época. Porque uma geração transpôs um portal tão sombrio e tão portentoso como foi esta guerra [a Primeira Grande Guerra], para ressurgir na luz da vida. Eis o que não podemos negar, ainda que alguns o quisessem: o combate, pai de todas as coisas, é também nosso pai. Foi ele que nos martelou, cinzelou e temperou, para fazer de nós o que somos. E enquanto a roda da vida vibrar em nós, esta guerra será sempre o eixo em torno do qual ela gira. Talhou-nos para o combate, e combatentes seremos enquanto existirmos”.

Verdade seja dita: há tempos de paz e tempos em que a chama da guerra precisa arder no coração dos homens para lembrá-los de que eles ainda vivem. Mas, se arrastarmos tal discussão para o âmbito ideológico, perceberemos que não há nada de intrinsecamente extraordinário na paz que justifique fazer dela uma bandeira, muito menos uma bandeira política. Na medida em que vamos avançando em nossa análise, notamos com clareza meridiana que o que levou os partidários da contracultura hippie a procederem de tal maneira, no fundo, não teve absolutamente nada a ver com o Vietnã, mas sim com a guerra em acepção genérica. Em outras palavras: o pacifismo não ataca a raiz do mal, porque sequer depende de um contexto determinado para emergir; ataca os sintomas.

Pouco espanta que ninguém nunca tenha discorrido profundamente sobre uma “metafísica da paz”, mas há quem escreveu páginas e mais páginas sobre a Metafísica da Guerra: este é o barão italiano Julius Evola, que, apesar de nunca ter combatido nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial como Jünger, foi ferido na coluna vertebral quando de sua estada em Viena por ocasião de um bombardeio à cidade, tendo os membros inferiores paralisados. O que podemos extrair de tal acontecimento? Que por mais trágicas que tenham sido as consequências da guerra para Evola, isto nunca o impediu de estudar suas repercussões nas mais diversificadas tradições etno-culturais. A guerra serve como fonte inesgotável de inspiração para inúmeros pensadores influentes através da história, tanto para os que a vivenciaram in loco quanto para os que se limitaram a contemplá-la desde uma perspectiva histórico-filosófica.

Em Metafísica da Guerra, Evola tece críticas contundentes acerca do processo de esmorecimento ao qual foi sendo paulatinamente submetido o arquétipo do Herói nas sociedades democráticas, terreno fértil para a disseminação do discurso pacifista e anti-bélico. Podemos tomar tais advertências mais como um vitupério do que como uma simples constatação:

“Como estão as coisas, a este respeito, no mundo das ‘democracias’? Eles querem agora, pela terceira vez neste século, conduzir a humanidade à guerra em nome da ‘guerra contra a guerra’. Isso exige homens para lutar esta guerra ao mesmo tempo em que a criticam. Exige heróis que proclamem o pacifismo como o mais alto ideal. Exige guerreiros ao mesmo tempo que fez ‘guerreiro’ sinônimo de atacante e criminoso e, uma vez que reduziu a base moral da ‘guerra justa’ a uma operação policial de grande escala, reduziu [também] o significado do espírito ao de combate para defender a si mesmo como último recurso” – tradução livre do inglês. (EVOLA, Julius. Metaphysics of War, pgs. 135 e 136)  

Este poderoso excerto do mestre italiano nos revela mais do que aparenta. Evola está dizendo aqui que a democracia moderna é um teatro cujo enredo anti-bélico constitui-se quase que exclusivamente de contradições. Ora, não seria o moralismo pacifista uma espécie de guerra contra a guerra, algo que procura desesperadamente um sentido de auto-justificabilidade que lhe permita seguir legislando em causa própria? De onde provém o ímpeto anti-guerra senão da guerra mesma ou da vontade indomável de guerrear? É neste sentido que advogamos a tese de que a mentalidade pacifista vive em perpétua auto-negação. Com efeito, o niilismo parece impregnar tão simbioticamente os princípios que regem o pensamento pacifista ao ponto de colocá-lo em um labirinto sem saída.

Ao contrário da esquerda marxista, possuidora de um caráter visivelmente belicoso que reflete, em sua melhor luz, a ideia de luta de classe, a nova esquerda se dedica inteiramente à proteção dos “fracos e oprimidos pelo sistema”. Se antes o proletariado industrial encarnava os piores pesadelos do burguês detentor da propriedade privada dos meios de produção, hoje o verdadeiro trabalhador encontra-se desamparado em virtude de uma proteção cada vez maior conferida a toda sorte de pessoas fracas de corpo, mente e, sobretudo, de caráter. Assistimos, inertes, hordas de hominídeos reivindicando para si uma atenção que nunca mereceram em nome de uma causa que jamais obteve a concreção necessária para ser considerada efetivamente defensável.

Em capítulo dedicado ao estudo dos fracassos do pacifismo inglês de sua obra A Rebelião das Massas, o proeminente filósofo e jornalista espanhol Jose Ortega y Gasset nos brinda com o seguinte escólio: “Como quase sempre acontece, o desfeito maior do pacifismo inglês – e, em geral, dos que se apresentam como titulares do pacifismo – tem sido subestimar o inimigo. Esta subestima lhes inspirou um diagnóstico falso. O pacifista vê na guerra um dano, um crime ou um vício. Mas esquece que, antes disso e acima disso, a guerra é um enorme esforço que os homens fazem para resolver certos conflitos. A guerra não é um instinto, mas um invento. Os animais a desconhecem e é pura instituição humana, como a ciência e a administração. Ela levou a um dos maiores descobrimentos, base de toda a civilização: ao descobrimento da disciplina. Todas as demais formas de disciplina procedem da primigênia, que foi a disciplina militar. O pacifismo está perdido e converte-se em nula beataria se não tem presente que a guerra é uma genial e formidável técnica de vida e para a vida”. (ORTEGA y GASSET, Jose. A Rebelião das Massas, pgs. 299 e 300)   
  
Razão assiste a Ortega y Gasset ao sublinhar a disciplina militar como um dos principais contributos da guerra para a humanidade. Tais dizeres podem soar abstrusos ou mesmo refratários em uma época que perdeu a noção do que significa viver em uma sociedade disciplinarmente organizada. Os postos de comando e obediência na atualidade desempenham uma função meramente simbólica ou de referência, mesmo no bojo da hierarquia militar, na qual deitam raízes. O impacto da “des-disciplinarização” recai em peso sobre o nível de coesão social. Ao desnuclearizar progressivamente os focos de irradiação do poder político e redistribui-lo entre uma massa amorfa de indivíduos heterogenicamente determinados (homem-massa, em terminologia de Ortega y Gasset), as instituições democráticas cumprem um enorme desserviço às virtudes cívicas consagradas tradicionalmente. Na prática, aniquila-se em duas centúrias o que a tradição levou pelo menos seis milênios para edificar: grupamentos sociais rigidamente solidificados que não só enxergavam a guerra como veículo de transcendência do espírito, a concretização da Paz de Deus, como também descobriam no campo de batalha um novo sentido para suas vidas, um modo se tornarem o que nunca puderam ser em tempos de paz.

Neste sentido, Julius Evola aduz que “partindo do que está abaixo para o que está acima, pode-se dizer, portanto, que a necessidade inevitável da justiça social na arena internacional de se revoltar contra a hegemonia das nações encarnando a ‘civilização dos comerciantes’ pode ser o [fator] determinante imediato da guerra. Mas aquele que luta uma guerra em terreno tal pode encontrar nele a ocasião para que realize, simultaneamente, uma experiência mais elevada, ou seja, lutando e sendo um herói, não tanto como soldado, mas como guerreiro, um homem que luta e ama o combate não tanto no interesse das conquistas materiais em nome do seu Rei ou da sua tradição. E, para além dessa fase, num estágio sucessivo, ou de uma classe superior, esta mesma guerra pode se tornar um meio para alcançar a guerra em seu sentido supremo, como ascetismo e “paz de Deus”, como culminação do significado da vida em geral, sobre o qual foi dito: vita est milita super terram. Somando-se a tudo isso – ele pode ser adicionado – não há dúvida de que o impulso e a capacidade de sacrifício são muito superiores em quem reconhece esse significado supremo da guerra em comparação com aquele para quem ela significa um meio de subordinação. E até mesmo este plano mundano da lei terrena pode se encontrar com a lei de Deus quando o mais trágico que exige pode ser feito em nome da grandeza de nações tão brilhantes em sentido último cuja acção constitui, no entanto, a superação da humanidade, desprezo pela existência mesquinha das ‘planícies’, a tensão que, em culminações supremas da vida, significa escolher algo que é mais do que a vida” – tradução livre do inglês. (EVOLA, Julius. Metaphysics of War, pgs. 92 e 93)

De todo o acima exposto, conclui-se que todos os esforços da mentalidade pacifista de se impor sobre o significado espiritualmente transcendente da guerra (e por guerra não nos restringimos ao contexto específico do Vietnã) acabaram instituindo uma nova tendência, que, em sua anti-beligerância, redefiniu os contornos semânticos da militaridade, fornecendo as bases sobre as quais se estribam os postulados gerais da nova esquerda. Hoje, conflitos de proporções bélicas são travados sob a égide de jargões humanistas, ao passo que nossos ancestrais nunca dependeram de tal maquiagem para redescobrirem a si mesmos no campo de batalha. A lição que podemos extrair dos escritos de Ernst Jünger e Julius Evola em contraste aos apelos sentimentais do movimento pacifista é que não importa quando uma guerra explode ou quantas vítimas ela carregue para a sepultura: o heroísmo será sempre uma virtude superior ao humanismo. Tal se verifica no fato de que a paz nunca constituiu fonte de inspiração para grandes homens. Estes são moldados em meio às trincheiras, ou no pensamento que nos ajuda a deslindar de maneira percuciente o que ocorre dentro delas. A Guerra do Vietnã foi o período histórico de transição da herança cultural legada a nós pela Geração da Guerra para as excrescências teratológicas do que poderíamos denominar “Geração da Paz”, que, no afã de proteger os “fracos” e os “oprimidos” da “ameaça nuclear” e das incursões militares, até agora não contribuiu em nada, exceto para a criação de uma raça sub-humana de miseráveis espécimes acovardados.     


REFERÊNCIAS:


EVOLA, Julius. Metaphysics of War. Arktos Media: United Kingdom, 2011.

GEODERLOOS, Peter. Como a Não-violência Protege o Estado. Capítulo: A não-violência é ineficaz, disponível em: http://www.deriva.com.br/?p=400

JÜNGER, Ernst. A Guerra Como Experiência Interior, disponível em: http://legio-victrix.blogspot.com.br/2012/03/guerra-como-experiencia-interior.html

JÜNGER, Ernst. A Mobilização Total. Natureza Humana: 2002.

ORTEGA y GASSET, Jose. A Rebelião das Massas. Ed. Ridendo Castigat Mores: 2001.

2 comentários:

  1. Há quem atribua a Machiavel o que igualmente Charles de Montesquieu constatou: "Somente o poder limita o poder"

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  2. Há quem atribua a Machiavel o que igualmente Charles de Montesquieu constatou: "Somente o poder limita o poder"

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