Por: Gustavo Aguiar
“Este gênio encerrado em seu calabouço infame,
Este grito, este
esgar, espectros cujo enxame
Sempre aos ouvidos seus, rebeldes turbilhona,
Homem sempre a sonhar que o horror não abandona,
Eis teu emblema, alma de frêmitos obscuros,
Que o Real asfixia em seus quatro muros!”
- Charles Baudelaire (Les Fleurs du Mal)
Volta e meia somos assaltados por sentenças
estarrecedoras que pintam o capitalismo industrial como um “mal necessário”,
algo de que não podemos fugir sem que parcela significativa da nossa existência
seja pulverizada, despedaçada, e, por maior que seja a vontade de nos rebelarmos
contra a tirania do deus-mercado, ela é sempre apaziguada pelo despotismo da mais-valia
existencial. Até que ponto vale a pena trabalhar para a manutenção desse estado
de coisas? O quão baixo nós, sedentários, pessoas presas ao solo, ao território
de origem, precisaremos descer na escala da irreflexão para que nos sintamos
suficientemente tiranizados pelos parasitas integrantes daquilo que Bauman
oportunamente denominou elite móvel extraterritorializada? Vale a pena se
“nomadizar” ao sabor de interesses puramente materialistas? Esses interesses
serão em algum momento satisfeitos, ou será que a tirania do capital
especulativo foi convenientemente arquitetada para nos catapultar em direção ao
horizonte inalcançável do eterno devir?
Procuraremos as respostas para essa saraivada de indagações
nos três principais condutores semióticos da esquizoanálise deleuzo-guattariana,
quais sejam: 1) o que descreve, em linhas gerais, a dinâmica de funcionamento
do regime significante do signo, em cujo contexto inseriremos o capitalismo industrial,
evidenciando de que modo ele consegue se impor despoticamente sobre a
polivocidade semiológica dos demais regimes significantes, e em que medida ele
depende do “supliciado” (classes subprivilegiadas) para se auto-perpetuar
mediante a assiduidade cúltica dos “sacerdotes” (burgueses, pequeno-burgueses e
lumpemproletariado). 2) o que descreve a dinâmica de funcionamento da
mecanosfera ou rizosfera a partir de um conjunto de máquinas abstratas e
agenciamentos maquínicos que desempenham, respectiva e sucessivamente, as
funções diagramática e maquínica, dois componentes essenciais da pragmática
esquizoanalítica. 3) o que descreve o núcleo autopoietico dos agenciamentos
coletivos como vetor matricial do procedimento heterogenético de multiplicação
de subjetividades, e como isso prescreve um paradigma ético-estético
infinitamente superior ao tecno-cientificismo, fonte de legitimidade do primado
do grande Capital em prejuízo ao primado da criatividade.
Gilles Deleuze e Félix Guattari não são o que poderíamos chamar
de filósofos na estrita acepção do termo, até mesmo porque a filosofia, tendo
se convertido em um ramo dentre outros no tronco da burocracia acadêmica (à
qual Guattari, um autodidata, nunca chegou a pertencer), perdeu, há muito, seu
caráter transdisciplinar. O núcleo da proposta contida em obras como Mille plateux: Capitalisme et schizophrénie
e Caosmose: um novo paradigma estético consiste justamente em resgatar
esse sentido de transdisciplinaridade, fornecendo um diagnóstico passível de
ser aplicado em várias disciplinas, e não somente à psiquiatria, de onde ela se
originou. Em Mille plateux, Guattari,
em parceria com Deleuze, constrói um verdadeiro aparato conceitual que viria,
mais tarde, a confluir para a fundamentação de Caosmose, sua obra-prima. Passaremos, doravante, a percorrer as
páginas de ambos os escritos com o intuito de deles extrair o que for relevante
para os fins da presente investigação.
Antes de explicar porque identificamos o sistema capitalista
como um regime significante do signo, impende sublinhar os aspectos gerais do significante,
buscando extrair deles uma definição compacta. Nos dizeres de Deleuze e
Guattari:
“O regime significante do signo é definido por oito aspectos
ou princípios: 1) o signo remete sempre ao signo, infinitamente (o ilimitado da
significância, que desterritorializa o signo); 2) o signo é levado pelo signo e
não cessa de voltar (a circularidade do signo desterritorializado); 3) o signo
salta de um círculo ao outro, e não cessa de deslocar o centro ao mesmo tempo
que se relacionar com ele (a metáfora ou histeria dos signos); 4) a expansão
dos círculos é sempre assegurada por interpretações que fornecem o significado
e fornecem novamente significante (a interpretose do sacerdote); 5) o conjunto
infinito dos signos remete a um significante maior que se apresenta igualmente
como falta e como excesso (o significante despótico, limite de
desterritorialização do sistema); 6) a forma do significante tem uma
substância, ou o significante tem um corpo que é Rosto (princípio dos traços de
rostidade, que constitui uma reterritorialização); 7) a linha de fuga do
sistema é afetada por um valor negativo, condenada como aquilo que excede à
potência de desterritorialização do regime significante (princípio do bode
emissário); 8) é um regime de trapaça universal, ao mesmo tempo nos saltos, nos
círculos regrados, nos regulamentos das interpretações do adivinho, na
publicidade do centro rostificado, no tratamento da linha de fuga”. (DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, pgs.
56 e 57)
Ao contrário do que se poderia imaginar, o capitalismo não constitui
um centro de poder positivo de onde emanam outros centros, nem um princípio
econômico em torno do qual os demais regimes significantes deveriam gravitar ;
é ele produto significante de phylum
(fluxos) maquínicos, tanto quanto sua antítese, a economia planificada. A
diferença entre ambos é que o grande Capital, como regime de significante do signo
que remete sempre ao signo em uma espécie de procedimentalidade tautológica
obstaculiza pré-linguisticamente a possibilidade dos códigos emitidos pelos
demais regimes percorrerem a totalidade dos estratos (platôs) que compõem a rizosfera.
É que, uma vez emitidos (desterritorializados ou descodificados), os códigos
passam pelo crivo de uma série de aparelhos ou máquinas incumbidas de promoverem
sua recodificação. Contudo, o capitalismo industrial parece possuir a tendência
de inibir a virtualidade dos phylum transportadores
de codificações heterogêneas. Nas palavras de Félix Guattari, “a escolha do
Capital, do significante, do Ser, participa de uma mesma opção ético-política. O
Capital esmaga sob sua bota todos os outros modos de valorização. O significante
faz calar as virtudes infinitas das línguas menores e das expressões parciais.
O Ser é como um aprisionamento que nos torna cegos e insensíveis à riqueza e à
multivalência dos Universos de valor que, entretanto,proliferam sob os nossos
olhos. Existe uma escolha ética em favor da riqueza do possível, uma ética e
uma política do virtual que descorporifica, desterritorializa a contingência, a
causalidade linear, peso dos estados de coisas e das significações que nos
assediam”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 41)
Podemos nos reportar à metáfora do bode emissário para
abstrair os contornos operacionais dessa hegemonia capitalística sobre os
demais Universos de referência nos seguintes termos: O totem de um regime significante do signo que, como vimos, remete infinitamente
a si mesmo, é representado, em seu momentum
de reterritorialização interpretativa, por “traços de rostidade”, haja vista
que “o rosto é o ícone próprio ao regime significante, a reterritorialização
interior ao sistema. O significante se reterritorializa no rosto. É o rosto que
dá a substância do significante, é ele que faz interpretar, e que muda, que
muda de traços, quando a interpretação fornece novamente significante à sua
substância. Veja, ele mudou de rosto. O significante é sempre rostificado”.
(DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia,
vol. 2, p. 54) A multiplicidade de rostos que o deus-déspota (regime
significante) arrogou, a priori, a si
mesmo, se revela através da “interpretose” do sacerdote. O sacerdote manipula a
imagem de deus conforme lhe é conveniente por meio de sua atividade
interpretativa. Tal nos permite enxergar o burguês, o pequeno burguês e o
lumpemproletariado como sacerdotes par
excellence em uma sociedade capitalista altamente globalizada, em que essas
três classes, nomadizadas, desterritorializadas, se fundem em uma única e mesma
elite móvel, hegemônica e ciberespacial. O deus-déspota possui, ainda, um
contra-corpo, representado pela figura do supliciado (classes
subprivilegiadas), de cujo sacrifício o significante se retroalimenta autopoieticamente.
O supliciado é, em última instância, “(...) aquele que perde seu rosto, e que
entra em um devir-animal, um devir molecular cujas cinzas espalhamos ao vento.
Mas diríamos que o supliciado não é absolutamente o termo último; é, ao
contrário, o primeiro passo antes da exclusão”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 55) A exclusão
propriamente dita é encarnada pela figura do bode emissário, aquele que,
transpondo a linha de fuga do signo significante, excede o grau máximo de
desterritorialização suportado pelo deus-déspota, de maneira ainda mais
arrojada do que seu contra-corpo seviciado, reprimido e martirizado. “Ele [o
supliciado] se suplicia, fura seus olhos, depois vai embora. O rito, o
devir-animal do bode emissário mostra-o bem: um primeiro bode expiatório é
sacrificado, mas um segundo bode é expulso, enviado para o deserto árido. No
regime significante, o bode emissário representa uma nova forma de aumento da
entropia para o sistema dos signos: está carregado de tudo o que é ‘ruim’, em
um dado período, isto é, de tudo o que resistiu aos signos significantes, de
tudo o que escapou às remissões de signo a signo através dos círculos
diferentes; assume igualmente tudo aquilo que não soube recarregar o
significante em seu centro, leva consigo tudo o que transpõe o círculo mais
exterior. Encarna, enfim, e sobretudo, a linha de fuga que o regime significante
não pode suportar, isto é, uma desterritorialização absoluta que esse regime
deve bloquear ou que só pode determinar de forma negativa, justamente porque
excede o grau de desterritorialização, por mais forte que este já seja, do
signo significante (...) Vocês nunca terão escolha senão entre o eu do bode e o
rosto de deus, os feiticeiros e os sacerdotes”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. Mil platôs: Capitalismo eesquizofrenia, vol. 2, pgs, 55 e 56)
Em uma sociedade de produção, a figura do bode emissário
poderia muito bem servir para designar os anseios revolucionários em provocar
uma espécie de ruptura com o sistema dominante, a fuga dos domínios
hermenêuticos dos sacerdotes e feiticeiros. Contudo, a globalização, consoante
aduz Zygmunt Bauman em Globalização: As
consequências humanas, marcou o período de transição para o paradigma da
sociedade de consumo, na qual o consumidor “(...) é uma criatura acentuadamente
diferente dos consumidores de quaisquer outras sociedades até aqui. Se os
nossos ancestrais filósofos, poetas e pregadores morais refletiram se o homem
trabalha para viver ou vive para trabalhar, o dilema sobre o qual mais se
cogita hoje em dia é se é necessário consumir para viver ou se o homem vive
para poder consumir. Isto é, se ainda somos capazes e sentimos a necessidade de
distinguir aquele que vive daquele que consome”. (BAUMAN, Zygmunt. Globalização:
As consequências humanas, pgs. 88 e 89) Em outras palavras: a sedentarização
das classes subprivilegiadas, ou a execução do bode sacrificado no ritual
macabro dos sacerdotes, vai de encontro ao seu anverso: a elite consumidora
que, justamente para eternizar a tirania espacio-temporal do deus-déspota, o
destinatário de seus tributos, precisa estar em constante mobilidade, criando
sempre novos itinerários na medida em que haure os velhos. Desnecessário
acrescentar que as chances dos despossuídos reivindicarem sua emancipação no
contexto de um paradigma social tipologicamente consumidor se tornam
praticamente nulas, o que transformaria o bode emissário em uma representação
aérea, flutuante, destituída de sujeito especificado. Acontece que não estamos
em busca de um sujeito, mas de um método capaz de oferecer uma fuga do sistema
sem que seja necessário aboli-lo. Antes de apontar este método, vejamos como
funciona o processo que acabamos de descrever metaforicamente, e através de
quais máquinas ele se torna efetivamente operacionalizável. As informações de
que dispomos até o presente momento dizem respeito à desterritorialização e
reterritorialização dos códigos enquanto estruturas linguisticamente
comunicáveis do significante do signo, e que a fórmula geral do regime
significante é, conforme síntese de Deleuze e Guattari: “o signo remete ao
signo, e remete tão somente ao signo, infinitamente”. (DELEUZE, Gilles;
GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 50) Mas de
onde sai o signo antes de percorrer todo esse trajeto e pelo crivo de qual
ordenação ele passa antes de se reterritorializar, de adquirir uma nova compleição
ou rostidade? É o que, doravante, procuraremos responder.
Deleuze e Guattari denominam mecanosfera (ou rizosfera) o agregado
de agenciamentos maquínicos, que, por sua vez, efetuam máquinas abstratas. São
basicamente essas duas estruturas encarregadas de transportar (fazer circular)
o conteúdo enunciativo de um estrato ao outro, razão pela qual se localizam em
uma dimensão interestrática, de descodificação, de tal sorte que “os signos não
constituem apenas uma rede infinita, a rede dos signos é infinitamente
circular. O enunciado sobrevive ao seu objeto: o nome, a seu dono. Seja
passando para outros signos, seja posto em reserva por um certo tempo, o signo
sobrevive a seu estado de coisas como a seu significado, salta como um animal
ou como um morto para retomar seu lugar na cadeia e investir um novo estado, um
novo significado do qual é extraído mais uma vez”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 52) Denomina-se
“plano de consistência” (ou planômeno) a estrutura produtora de continuums de intensidade que irá
regenciar os phylum desterritorializantes.
E aqui já podemos vislumbrar a quais critérios estariam submetidas as funções
diagramática e maquínica, levadas a cabo, respectivamente, pelas máquinas
abstratas e pelos agenciamentos coletivos de enunciação. “A máquina abstrata ora se desenvolve no
plano de consistência cujos contínuos, emissões e conjugações constrói, ora
permanece envolvida num estrato do qual ela define a unidade de composição e a
força de atração ou preensão. O agenciamento
maquínico é completamente diferente, se bem que em estreita relação:
primeiro ele opera as co-adaptações de conteúdo e expressão num estrato, assegura
as correlações biunívocas entre segmentos de ambos, pilota as divisões do
estrato em epistratos e paraestratos; depois, de um estrato ao outro, assegura
a relação com o que é subestrato e as correspondentes mudanças de organização;
finalmente, ele é voltado para o plano de consistência porque efetua
necessariamente a máquina abstrata em tal ou qual estrato, entre os estratos e
na relação destes com o plano. Era preciso um agenciamento, por exemplo a
bigorna do ferreiro mencionada pelos Dogons, para que se fizessem as
articulações do estrato orgânico. É
preciso um agenciamento para que se faça a relação entre dois estratos. Para
que os organismos se vejam presos e penetrados num campo social que os utilize:
as Amazonas não têm que cortar um seio para que o estrato orgânico se adapte a
um estrato tecnológico guerreiro, por exigência de um terrível agenciamento
mulher-arco-estepe?” (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo
e esquizofrenia,vol. 1, p. 87)
Toda essa performance, eivada de uma certa complexidade funcional,
ocorre na superfície de estratos que não pertencem a níveis ou instâncias
diferentes de singularização, e sim a um mesmo terreno, a uma mesma base ou
plataforma, é dizer: a um mesmo plano de consistência incumbido de converter
signos e partículas (partigos, na
terminologia deleuzo-guattariana) em compostos orgânicos que viriam a formar os
contornos semânticos do Ecúmeno, o outro lado da “lagosta”, no qual não nos
aprofundaremos por fugir às latitudes do objeto em tela. Todo esse percurso
virtual define o módulo de organização do fractal, do capitalismo como regime
significante do signo, que, consoante verificamos, sempre sobrevive ao seu
significado. É como se o signo passasse “por cima” do significado durante esse
procedimento. Em Caosmose, Guattari
chega à conclusão de que os agenciamentos maquínicos não só podem funcionar
como de fato funcionam como agenciamentos coletivos, aplicáveis, em igual
medida, a paradigmas sociais, e é nesta conjuntura sócio-econômica que o
capitalismo logra dinamizar-se e hiperxomplexificar-se, até alcançar a
hegemonia absoluta, tornando-se um regime semiótico autossuficiente. Importante
frisar que a semiótica significante funciona paralelamente a outras espécies de
regimes semióticos, que podem ser: semiótica pré-significante, semiótica
pós-significante e semiótica contra-significante.
Resta ainda esmiuçar, neste segundo ponto, as funções
diagramática e maquínica, executadas pelas máquinas abstratas e pelos
agenciamentos maquínicos. Deleuze e Guattari se reportam a Noam Chomsky para
postular os quatro componentes funcionais essenciais da pragmática
esquizoanalítica, quais sejam, nesta ordem de ocorrência: componente gerativo,
componente transformacional, componente diagramático e componente maquínico. “O
conjunto da pragmática consistiria em fazer o decalque das semióticas mistas no componente gerativo; fazer o mapa
transformacional dos regimes, com suas possibilidades de tradução e de criação,
de germinação nos decalques; fazer o diagrama
das máquinas abstratas colocadas em jogo em cada caso, como potencialidades ou
como surgimentos efetivos; fazer o programa
dos agenciamentos que ventilam o conjunto e fazem circular o movimento, com
suas alternativas, seus saltos e mutações”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.
Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 91)
O componente gerativo é típico da correlação de semióticas
híbridas, concretamente articuladas sob a forma de proposição ou enunciação,
cujo conteúdo depende topograficamente do regime no bojo do qual será veiculada
(significante, pré-significante, pós-significante ou contra-significante). Um
mesmo enunciado pode obter conotações e denotações completamente diferentes em
diferentes regimes de subjetivação. O componente transformacional, típico das
semióticas puras, realiza o translado de um enunciado para outros regimes semiológicos,
possibilitando, em contrapartida, que um determinado regime absorva elementos
suscetíveis de tradução no que couber. O componente diagramático, apontado por
Deleuze e Guattari como o estudo das máquinas abstratas sob a perspectiva das
matérias física e semioticamente “não formadas” secreta potências
linguisticamente mirabolantes, pertencentes “(...) tanto [a] regimes muito
rebuscados, metafóricos e imbecilizantes, quanto [a] gritos-sopros,
improvisações ardentes, devires-animais, devires-moleculares, transsexualidades
reais, continuums de intensidade,
constituições de corpos sem órgãos...” (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil
platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, pgs. 91 e 92) E, por último, temos
o componente maquínico, levado a cabo por agenciamentos que efetuam as máquinas
abstratas; que organiza, concatena ou semiotiza o conteúdo abstratamente
veiculado. É o agenciamento que planifica os estratos, que os fazem
corresponder ao plano de consistência.
Procederemos agora a uma última distinção antes de explicar
como o capitalismo garante sua hegemonia industrial sobre os demais regimes
semióticos, ditos “inferiores”. Félix Guattari toma de empréstimo do biólogo
Francisco Varela duas expressões que serão empregadas no contexto maquínico
(não-biológico) para evidenciar as mutações das subjetividades produzidas no
seio do organismo que acabamos de descrever. São elas: alopoiese e autopoiese,
e podem ser apreendidas nos seguintes termos:
“Francisco Varela caracteriza uma máquina como o ‘conjunto
das inter-relações de seus componentes independentemente de seus próprios
componentes’ (...) Ele distingue dois tipos de máquinas: as ‘alopoiéticas’, que
produzem algo diferente delas mesmas, e as “autopoiéticas”, que engendram e
especificam continuamente sua própria organização e seus próprios limites.
Estas últimas realizam um processo incessante de substituição de seus componentes
porque estão submetidas a perturbações externas que devem constantemente
compensar. De fato, a qualificação de autopoiética é reservada por Varela ao
domínio biológico; dela são excluídos os sistemas sociais, as máquinas
técnicas, os sistemas cristalinos etc. – tal é o sentido de sua distinção entre
alopoiese e autopoiese. Mas a autopoiese, que define unicamente entidades
autônomas, individualizadas, unitárias e escapando às relações de input e output, carece das características essenciais aos organismos vivos,
como o fato de que nascem, morrem e sobrevivem através de phylum genéticos”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma
estético, p. 50)
A constatação de que a autopoiese carece dos atributos imprescindíveis
para a caracterização dos organismos biológicos levou Guattari a relacioná-la aos
agenciamentos maquínicos sob um viés simultaneamente ontogenético e
filogenético próprio “de uma mecanosfera que se superpõe à biosfera”.
(GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 50) Para Guattari, o
núcleo maquínico do agenciamento coletivo (que, como analisamos, efetua ou
semiotiza a máquina abstrata) é, a princípio, um núcleo autopoiético. Em seara
filogenética, as máquinas se proliferam historicamente mediante rizoma; elas se
auto-reproduzem evolutivamente em várias direções através de vetores ou
paradigmas sociais distintos. É assim que estruturas relativamente simples,
como, por exemplo, o brinquedo de uma criança do império chinês, desencadeiam o
auge da produção de máquinas a vapor nos países da Europa setentrional. Neste
ponto, basta lembrarmos do efeito borbololeta desenvolvido pela teoria do caos,
segundo o qual o bater de asas de uma borboleta pode interferir no curso
natural dos acontecimentos, e, quiçá, provocar um furação no outro lado do
mundo. “É no cruzamento de universos maquínicos heterogêneos, de dimensões
diferentes, de textura ontológica estranha, com inovações radicais, sinais de
maquinismos ancestrais outrora esquecidos e depois reativados, que se
singulariza o movimento da história. A máquina neolítica associa, entre outros
componentes, a máquina da língua falada, as máquinas de pedra talhada, as
máquinas agrárias fundadas na seleção dos grãos e uma protoeconomia aldeã...”
(GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 51)
Todavia, a dimensão ontogenética nos revelará que a
protomáquina não evolui em ritmo programado, ela não faz rizoma de si mesma
observando um padrão de desdobramento sincrônico, mas uma dispersividade
“heterocrônica”, motivo pelo qual ela às vezes se perde no curso de seu
encadeamento rizomático, no desabrochar de sua metamorfose, ou nos ecos de sua
orquestra polifônica. “Essas virtualidades diagramáticas fazem-nos sair da
caracterização da autopoiese maquínica por Varela em termos de individuação
unitária, sem input nem output, e nos levam a enfatizar um
maquinismo mais coletivo, sem unidade delimitada e cuja autonomia se adapta a
diversos suportes de alteridade. A reprodutibilidade da máquina técnica,
diferentemente da dos seres vivos, não repousa em sequências de codificação
perfeitamente circunscritas em um genoma territorializado. Cada máquina
tecnológica tem seus planos de concepção e de montagem mas, por um lado, estes
mantém sua distância em relação a ela e, por outro lado, são remetidos de uma
máquina a outra, de modo a constituir um rizoma diagramático que tende a cobrir
globalmente a mecanosfera”. (GUATTARI, Féliz. Caosmose: um novo paradigma estético,
p. 53)
O núcleo autopoiético das máquinas industriais na conjuntura
de uma sociedade globalizada, a partir de cuja inter-relação heterocrônica com
complexos maquínicos estruturalmente diferenciados ela consegue se impor despoticamente
sobre eles, obstaculiza o potencial criativo de regimes de subjetividade não
condizentes com seus imperativos de rostificação ou reterritorialização. É como
se o capitalismo tivesse o “poder” de congestionar os poros do esquizo que
se-lhe afiguram, de uma forma ou de outra, desfavoráveis, por onde escapam as
ramificações ou derivações do rizoma, subordinando o funcionamento da
mecanosfera ao seu alvitre. A oferenda do primeiro bode realizada pelos
sacerdotes (é dizer, a sedentarização, o confinamento espacial dos despossuídos
pelas classes abastadas) confere cada vez mais mobilidade e poder de locomoção
à elite consumidora. O ziguezaguear dos agentes itinerantes detentores desse privilégio
aquisitivo perfaz a hegemonia do significante (o deus-déspota), que já não
precisa mais se alimentar de sacrifícios de bodes. Ele agora metaboliza
velocidade, deslocamento, mobilidade ao mesmo tempo em que procura
desesperadamente barrar, ou, pelo menos, limitar ao máximo, o alcance da linha
de fuga do segundo bode, o bode emissário.
O deus-déspota, como já sabemos, é o capitalismo. Mas quem
seria o bode emissário? Ora, o próprio núcleo autopoiético do agenciamento
maquínico, encarregado de fazer proliferar oscilações nos continuums de intensidade, radicularizando universos de referência movediços
que se traduzirão em subjetivações heterogenéticas. Ele estava tão perto de nós
que não podíamos enxergá-lo, mas agora que estamos familiarizados com ele,
podemos não só enxergá-lo como também sentir a realidade que partilhamos sendo
engolida pela virtualidade do eterno devir autopoieticamente engendrada;
sentimos a propulsão do impulso criativo sendo buscada fora do regime
significante. Mas esse núcleo autopoiético deve ser encarado sob condições
diversas das estabelecidas pelo cientificismo, que apresenta a biosfera como o
grau máximo de desterritorialização do significante do signo, olvidando que
além dela existe um horizonte virtual de infinitas possibilidades que se
estende até a mecanosfera, fonte de todo o devir-criativo; afinal, é a
virtualidade que atrai a estrutura da realidade para perto de si, e não o
contrário. Nos dizeres de Guattari:
“A autopoiese maquínica se afirma como um para-si não humano
através de focos de protossubjetivação parcial e desdobra um para-outrem sob a
dupla modalidade de uma alteridade ecossistêmica “horizontal” (os sistemas
maquínicos se posicionando como rizoma de dependência recíproca) e de um
alteridade filogenética (situando cada estase maquínica atual de encontro a uma
passadificada e de um Phylum de
mutações por vir). Todos os sistemas de valor – religiosos, estéticos,
científicos, ecosóficos... – se instauram nessa interface maquínica entre o
atual necessário e o virtual possibilista. Os Universos de valor constituem
assim os enunciadores incorporais de compleições maquínicas abstratas
compossíveis às realidades discursivas. A consistência desses focos de
protossubjetivação, portanto, só é assegurada na medida em que eles se
encarnem, com mais ou menos intensidade, em nós de finitude, de grasping caósmico, que garantam, além
disso, sua recarga possível de complexidade processual. Dupla enunciação,
então, territorializada finita e incorporal infinita”. (GUATTARI, Félix.
Caosmose: um novo paradigma estético, p. 66)
Depreende-se, portanto, que a tirania do capital
especulativo se retroalimenta a partir da emissão de imperativos de mobilização
a serem recepcionados por uma elite nômade extraterritorializada, em flagrante
supressão de outros sistemas ou universos de valor, de outros focos produtores
de subjetividade que se originam na teia caósmica da heterogênese. Ao
reivindicar a hegemonia global sobre os demais regimes semiológicos, o
capitalismo industrial deixa transparecer sua tendência inibitória, despótica e
anti-criativa, esmagando sob sua bota quaisquer meios e modos de expressão que
não contribuam, direta ou indiretamente, para o agigantamento de seu influxo
totalitário, para a limitação ou enquadramento da virtualidade, responsável
pelo desdobramento das cadeias rizomáticas, pela fabricação genuína de
ramificações tuberculares. Para além da
mecânica diagramático-maquínica das máquinas abstratas e dos agenciamentos
coletivos de enunciação, para além do continente assombrado do deus-déspota, a
mecanosfera prolonga-se ao infinito, fornecendo continuamente possibilidades
heumenêuticas mais complexas do que a interpretação realizada pelos sacerdotes
e feiticeiros em proveito do único deus que conhecem: o deus-mercado. A
caosmose surge como um paradigma ético-estético de superação ao tecno-cientificismo
homogeneizante.
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências Humanas. Jorge
Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1999.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e
esquizofrenia, vol. 1. editora 34: São Paulo, 1995
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e
esquizofrenia, vol 2. editora 34: São Paulo, 1995.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Editora
34: São Paulo 2012.
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