sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Capitalismo como Regime Significante do Signo sob o Viés Esquizoanalítico

Por: Gustavo Aguiar


“Este gênio encerrado em seu calabouço infame,
Este grito, este esgar, espectros cujo enxame
Sempre aos ouvidos seus, rebeldes turbilhona,

Homem sempre a sonhar que o horror não abandona,
Eis teu emblema, alma de frêmitos obscuros,
Que o Real asfixia em seus quatro muros!”


- Charles Baudelaire (Les Fleurs du Mal)


Volta e meia somos assaltados por sentenças estarrecedoras que pintam o capitalismo industrial como um “mal necessário”, algo de que não podemos fugir sem que parcela significativa da nossa existência seja pulverizada, despedaçada, e, por maior que seja a vontade de nos rebelarmos contra a tirania do deus-mercado, ela é sempre apaziguada pelo despotismo da mais-valia existencial. Até que ponto vale a pena trabalhar para a manutenção desse estado de coisas? O quão baixo nós, sedentários, pessoas presas ao solo, ao território de origem, precisaremos descer na escala da irreflexão para que nos sintamos suficientemente tiranizados pelos parasitas integrantes daquilo que Bauman oportunamente denominou elite móvel extraterritorializada? Vale a pena se “nomadizar” ao sabor de interesses puramente materialistas? Esses interesses serão em algum momento satisfeitos, ou será que a tirania do capital especulativo foi convenientemente arquitetada para nos catapultar em direção ao horizonte inalcançável do eterno devir?

Procuraremos as respostas para essa saraivada de indagações nos três principais condutores semióticos da esquizoanálise deleuzo-guattariana, quais sejam: 1) o que descreve, em linhas gerais, a dinâmica de funcionamento do regime significante do signo, em cujo contexto inseriremos o capitalismo industrial, evidenciando de que modo ele consegue se impor despoticamente sobre a polivocidade semiológica dos demais regimes significantes, e em que medida ele depende do “supliciado” (classes subprivilegiadas) para se auto-perpetuar mediante a assiduidade cúltica dos “sacerdotes” (burgueses, pequeno-burgueses e lumpemproletariado). 2) o que descreve a dinâmica de funcionamento da mecanosfera ou rizosfera a partir de um conjunto de máquinas abstratas e agenciamentos maquínicos que desempenham, respectiva e sucessivamente, as funções diagramática e maquínica, dois componentes essenciais da pragmática esquizoanalítica. 3) o que descreve o núcleo autopoietico dos agenciamentos coletivos como vetor matricial do procedimento heterogenético de multiplicação de subjetividades, e como isso prescreve um paradigma ético-estético infinitamente superior ao tecno-cientificismo, fonte de legitimidade do primado do grande Capital em prejuízo ao primado da criatividade.  

Gilles Deleuze e Félix Guattari não são o que poderíamos chamar de filósofos na estrita acepção do termo, até mesmo porque a filosofia, tendo se convertido em um ramo dentre outros no tronco da burocracia acadêmica (à qual Guattari, um autodidata, nunca chegou a pertencer), perdeu, há muito, seu caráter transdisciplinar. O núcleo da proposta contida em obras como Mille plateux: Capitalisme et schizophrénie e Caosmose: um novo paradigma estético consiste justamente em resgatar esse sentido de transdisciplinaridade, fornecendo um diagnóstico passível de ser aplicado em várias disciplinas, e não somente à psiquiatria, de onde ela se originou. Em Mille plateux, Guattari, em parceria com Deleuze, constrói um verdadeiro aparato conceitual que viria, mais tarde, a confluir para a fundamentação de Caosmose, sua obra-prima. Passaremos, doravante, a percorrer as páginas de ambos os escritos com o intuito de deles extrair o que for relevante para os fins da presente investigação.

Antes de explicar porque identificamos o sistema capitalista como um regime significante do signo, impende sublinhar os aspectos gerais do significante, buscando extrair deles uma definição compacta. Nos dizeres de Deleuze e Guattari:

“O regime significante do signo é definido por oito aspectos ou princípios: 1) o signo remete sempre ao signo, infinitamente (o ilimitado da significância, que desterritorializa o signo); 2) o signo é levado pelo signo e não cessa de voltar (a circularidade do signo desterritorializado); 3) o signo salta de um círculo ao outro, e não cessa de deslocar o centro ao mesmo tempo que se relacionar com ele (a metáfora ou histeria dos signos); 4) a expansão dos círculos é sempre assegurada por interpretações que fornecem o significado e fornecem novamente significante (a interpretose do sacerdote); 5) o conjunto infinito dos signos remete a um significante maior que se apresenta igualmente como falta e como excesso (o significante despótico, limite de desterritorialização do sistema); 6) a forma do significante tem uma substância, ou o significante tem um corpo que é Rosto (princípio dos traços de rostidade, que constitui uma reterritorialização); 7) a linha de fuga do sistema é afetada por um valor negativo, condenada como aquilo que excede à potência de desterritorialização do regime significante (princípio do bode emissário); 8) é um regime de trapaça universal, ao mesmo tempo nos saltos, nos círculos regrados, nos regulamentos das interpretações do adivinho, na publicidade do centro rostificado, no tratamento da linha de fuga”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, pgs. 56 e 57) 

Ao contrário do que se poderia imaginar, o capitalismo não constitui um centro de poder positivo de onde emanam outros centros, nem um princípio econômico em torno do qual os demais regimes significantes deveriam gravitar ; é ele produto significante de phylum (fluxos) maquínicos, tanto quanto sua antítese, a economia planificada. A diferença entre ambos é que o grande Capital, como regime de significante do signo que remete sempre ao signo em uma espécie de procedimentalidade tautológica obstaculiza pré-linguisticamente a possibilidade dos códigos emitidos pelos demais regimes percorrerem a totalidade dos estratos (platôs) que compõem a rizosfera. É que, uma vez emitidos (desterritorializados ou descodificados), os códigos passam pelo crivo de uma série de aparelhos ou máquinas incumbidas de promoverem sua recodificação. Contudo, o capitalismo industrial parece possuir a tendência de inibir a virtualidade dos phylum transportadores de codificações heterogêneas. Nas palavras de Félix Guattari, “a escolha do Capital, do significante, do Ser, participa de uma mesma opção ético-política. O Capital esmaga sob sua bota todos os outros modos de valorização. O significante faz calar as virtudes infinitas das línguas menores e das expressões parciais. O Ser é como um aprisionamento que nos torna cegos e insensíveis à riqueza e à multivalência dos Universos de valor que, entretanto,proliferam sob os nossos olhos. Existe uma escolha ética em favor da riqueza do possível, uma ética e uma política do virtual que descorporifica, desterritorializa a contingência, a causalidade linear, peso dos estados de coisas e das significações que nos assediam”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 41) 

Podemos nos reportar à metáfora do bode emissário para abstrair os contornos operacionais dessa hegemonia capitalística sobre os demais Universos de referência nos seguintes termos: O totem de um regime significante do signo que, como vimos, remete infinitamente a si mesmo, é representado, em seu momentum de reterritorialização interpretativa, por “traços de rostidade”, haja vista que “o rosto é o ícone próprio ao regime significante, a reterritorialização interior ao sistema. O significante se reterritorializa no rosto. É o rosto que dá a substância do significante, é ele que faz interpretar, e que muda, que muda de traços, quando a interpretação fornece novamente significante à sua substância. Veja, ele mudou de rosto. O significante é sempre rostificado”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 54) A multiplicidade de rostos que o deus-déspota (regime significante) arrogou, a priori, a si mesmo, se revela através da “interpretose” do sacerdote. O sacerdote manipula a imagem de deus conforme lhe é conveniente por meio de sua atividade interpretativa. Tal nos permite enxergar o burguês, o pequeno burguês e o lumpemproletariado como sacerdotes par excellence em uma sociedade capitalista altamente globalizada, em que essas três classes, nomadizadas, desterritorializadas, se fundem em uma única e mesma elite móvel, hegemônica e ciberespacial. O deus-déspota possui, ainda, um contra-corpo, representado pela figura do supliciado (classes subprivilegiadas), de cujo sacrifício o significante se retroalimenta autopoieticamente. O supliciado é, em última instância, “(...) aquele que perde seu rosto, e que entra em um devir-animal, um devir molecular cujas cinzas espalhamos ao vento. Mas diríamos que o supliciado não é absolutamente o termo último; é, ao contrário, o primeiro passo antes da exclusão”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 55) A exclusão propriamente dita é encarnada pela figura do bode emissário, aquele que, transpondo a linha de fuga do signo significante, excede o grau máximo de desterritorialização suportado pelo deus-déspota, de maneira ainda mais arrojada do que seu contra-corpo seviciado, reprimido e martirizado. “Ele [o supliciado] se suplicia, fura seus olhos, depois vai embora. O rito, o devir-animal do bode emissário mostra-o bem: um primeiro bode expiatório é sacrificado, mas um segundo bode é expulso, enviado para o deserto árido. No regime significante, o bode emissário representa uma nova forma de aumento da entropia para o sistema dos signos: está carregado de tudo o que é ‘ruim’, em um dado período, isto é, de tudo o que resistiu aos signos significantes, de tudo o que escapou às remissões de signo a signo através dos círculos diferentes; assume igualmente tudo aquilo que não soube recarregar o significante em seu centro, leva consigo tudo o que transpõe o círculo mais exterior. Encarna, enfim, e sobretudo, a linha de fuga que o regime significante não pode suportar, isto é, uma desterritorialização absoluta que esse regime deve bloquear ou que só pode determinar de forma negativa, justamente porque excede o grau de desterritorialização, por mais forte que este já seja, do signo significante (...) Vocês nunca terão escolha senão entre o eu do bode e o rosto de deus, os feiticeiros e os sacerdotes”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo eesquizofrenia, vol. 2, pgs, 55 e 56)

Em uma sociedade de produção, a figura do bode emissário poderia muito bem servir para designar os anseios revolucionários em provocar uma espécie de ruptura com o sistema dominante, a fuga dos domínios hermenêuticos dos sacerdotes e feiticeiros. Contudo, a globalização, consoante aduz Zygmunt Bauman em Globalização: As consequências humanas, marcou o período de transição para o paradigma da sociedade de consumo, na qual o consumidor “(...) é uma criatura acentuadamente diferente dos consumidores de quaisquer outras sociedades até aqui. Se os nossos ancestrais filósofos, poetas e pregadores morais refletiram se o homem trabalha para viver ou vive para trabalhar, o dilema sobre o qual mais se cogita hoje em dia é se é necessário consumir para viver ou se o homem vive para poder consumir. Isto é, se ainda somos capazes e sentimos a necessidade de distinguir aquele que vive daquele que consome”. (BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas, pgs. 88 e 89) Em outras palavras: a sedentarização das classes subprivilegiadas, ou a execução do bode sacrificado no ritual macabro dos sacerdotes, vai de encontro ao seu anverso: a elite consumidora que, justamente para eternizar a tirania espacio-temporal do deus-déspota, o destinatário de seus tributos, precisa estar em constante mobilidade, criando sempre novos itinerários na medida em que haure os velhos. Desnecessário acrescentar que as chances dos despossuídos reivindicarem sua emancipação no contexto de um paradigma social tipologicamente consumidor se tornam praticamente nulas, o que transformaria o bode emissário em uma representação aérea, flutuante, destituída de sujeito especificado. Acontece que não estamos em busca de um sujeito, mas de um método capaz de oferecer uma fuga do sistema sem que seja necessário aboli-lo. Antes de apontar este método, vejamos como funciona o processo que acabamos de descrever metaforicamente, e através de quais máquinas ele se torna efetivamente operacionalizável. As informações de que dispomos até o presente momento dizem respeito à desterritorialização e reterritorialização dos códigos enquanto estruturas linguisticamente comunicáveis do significante do signo, e que a fórmula geral do regime significante é, conforme síntese de Deleuze e Guattari: “o signo remete ao signo, e remete tão somente ao signo, infinitamente”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 50) Mas de onde sai o signo antes de percorrer todo esse trajeto e pelo crivo de qual ordenação ele passa antes de se reterritorializar, de adquirir uma nova compleição ou rostidade? É o que, doravante, procuraremos responder.

Deleuze e Guattari denominam mecanosfera (ou rizosfera) o agregado de agenciamentos maquínicos, que, por sua vez, efetuam máquinas abstratas. São basicamente essas duas estruturas encarregadas de transportar (fazer circular) o conteúdo enunciativo de um estrato ao outro, razão pela qual se localizam em uma dimensão interestrática, de descodificação, de tal sorte que “os signos não constituem apenas uma rede infinita, a rede dos signos é infinitamente circular. O enunciado sobrevive ao seu objeto: o nome, a seu dono. Seja passando para outros signos, seja posto em reserva por um certo tempo, o signo sobrevive a seu estado de coisas como a seu significado, salta como um animal ou como um morto para retomar seu lugar na cadeia e investir um novo estado, um novo significado do qual é extraído mais uma vez”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 52) Denomina-se “plano de consistência” (ou planômeno) a estrutura produtora de continuums de intensidade que irá regenciar os phylum desterritorializantes. E aqui já podemos vislumbrar a quais critérios estariam submetidas as funções diagramática e maquínica, levadas a cabo, respectivamente, pelas máquinas abstratas e pelos agenciamentos coletivos de enunciação. “A máquina abstrata ora se desenvolve no plano de consistência cujos contínuos, emissões e conjugações constrói, ora permanece envolvida num estrato do qual ela define a unidade de composição e a força de atração ou preensão. O agenciamento maquínico é completamente diferente, se bem que em estreita relação: primeiro ele opera as co-adaptações de conteúdo e expressão num estrato, assegura as correlações biunívocas entre segmentos de ambos, pilota as divisões do estrato em epistratos e paraestratos; depois, de um estrato ao outro, assegura a relação com o que é subestrato e as correspondentes mudanças de organização; finalmente, ele é voltado para o plano de consistência porque efetua necessariamente a máquina abstrata em tal ou qual estrato, entre os estratos e na relação destes com o plano. Era preciso um agenciamento, por exemplo a bigorna do ferreiro mencionada pelos Dogons, para que se fizessem as articulações do estrato orgânico.  É preciso um agenciamento para que se faça a relação entre dois estratos. Para que os organismos se vejam presos e penetrados num campo social que os utilize: as Amazonas não têm que cortar um seio para que o estrato orgânico se adapte a um estrato tecnológico guerreiro, por exigência de um terrível agenciamento mulher-arco-estepe?” (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia,vol. 1, p. 87)

Toda essa performance, eivada de uma certa complexidade funcional, ocorre na superfície de estratos que não pertencem a níveis ou instâncias diferentes de singularização, e sim a um mesmo terreno, a uma mesma base ou plataforma, é dizer: a um mesmo plano de consistência incumbido de converter signos e partículas (partigos, na terminologia deleuzo-guattariana) em compostos orgânicos que viriam a formar os contornos semânticos do Ecúmeno, o outro lado da “lagosta”, no qual não nos aprofundaremos por fugir às latitudes do objeto em tela. Todo esse percurso virtual define o módulo de organização do fractal, do capitalismo como regime significante do signo, que, consoante verificamos, sempre sobrevive ao seu significado. É como se o signo passasse “por cima” do significado durante esse procedimento. Em Caosmose, Guattari chega à conclusão de que os agenciamentos maquínicos não só podem funcionar como de fato funcionam como agenciamentos coletivos, aplicáveis, em igual medida, a paradigmas sociais, e é nesta conjuntura sócio-econômica que o capitalismo logra dinamizar-se e hiperxomplexificar-se, até alcançar a hegemonia absoluta, tornando-se um regime semiótico autossuficiente. Importante frisar que a semiótica significante funciona paralelamente a outras espécies de regimes semióticos, que podem ser: semiótica pré-significante, semiótica pós-significante e semiótica contra-significante.

Resta ainda esmiuçar, neste segundo ponto, as funções diagramática e maquínica, executadas pelas máquinas abstratas e pelos agenciamentos maquínicos. Deleuze e Guattari se reportam a Noam Chomsky para postular os quatro componentes funcionais essenciais da pragmática esquizoanalítica, quais sejam, nesta ordem de ocorrência: componente gerativo, componente transformacional, componente diagramático e componente maquínico. “O conjunto da pragmática consistiria em fazer o decalque das semióticas mistas no componente gerativo; fazer o mapa transformacional dos regimes, com suas possibilidades de tradução e de criação, de germinação nos decalques; fazer o diagrama das máquinas abstratas colocadas em jogo em cada caso, como potencialidades ou como surgimentos efetivos; fazer o programa dos agenciamentos que ventilam o conjunto e fazem circular o movimento, com suas alternativas, seus saltos e mutações”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 91)

O componente gerativo é típico da correlação de semióticas híbridas, concretamente articuladas sob a forma de proposição ou enunciação, cujo conteúdo depende topograficamente do regime no bojo do qual será veiculada (significante, pré-significante, pós-significante ou contra-significante). Um mesmo enunciado pode obter conotações e denotações completamente diferentes em diferentes regimes de subjetivação. O componente transformacional, típico das semióticas puras, realiza o translado de um enunciado para outros regimes semiológicos, possibilitando, em contrapartida, que um determinado regime absorva elementos suscetíveis de tradução no que couber. O componente diagramático, apontado por Deleuze e Guattari como o estudo das máquinas abstratas sob a perspectiva das matérias física e semioticamente “não formadas” secreta potências linguisticamente mirabolantes, pertencentes “(...) tanto [a] regimes muito rebuscados, metafóricos e imbecilizantes, quanto [a] gritos-sopros, improvisações ardentes, devires-animais, devires-moleculares, transsexualidades reais, continuums de intensidade, constituições de corpos sem órgãos...” (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, pgs. 91 e 92) E, por último, temos o componente maquínico, levado a cabo por agenciamentos que efetuam as máquinas abstratas; que organiza, concatena ou semiotiza o conteúdo abstratamente veiculado. É o agenciamento que planifica os estratos, que os fazem corresponder ao plano de consistência.

Procederemos agora a uma última distinção antes de explicar como o capitalismo garante sua hegemonia industrial sobre os demais regimes semióticos, ditos “inferiores”. Félix Guattari toma de empréstimo do biólogo Francisco Varela duas expressões que serão empregadas no contexto maquínico (não-biológico) para evidenciar as mutações das subjetividades produzidas no seio do organismo que acabamos de descrever. São elas: alopoiese e autopoiese, e podem ser apreendidas nos seguintes termos:

“Francisco Varela caracteriza uma máquina como o ‘conjunto das inter-relações de seus componentes independentemente de seus próprios componentes’ (...) Ele distingue dois tipos de máquinas: as ‘alopoiéticas’, que produzem algo diferente delas mesmas, e as “autopoiéticas”, que engendram e especificam continuamente sua própria organização e seus próprios limites. Estas últimas realizam um processo incessante de substituição de seus componentes porque estão submetidas a perturbações externas que devem constantemente compensar. De fato, a qualificação de autopoiética é reservada por Varela ao domínio biológico; dela são excluídos os sistemas sociais, as máquinas técnicas, os sistemas cristalinos etc. – tal é o sentido de sua distinção entre alopoiese e autopoiese. Mas a autopoiese, que define unicamente entidades autônomas, individualizadas, unitárias e escapando às relações de input e output, carece das características essenciais aos organismos vivos, como o fato de que nascem, morrem e sobrevivem através de phylum genéticos”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 50)

A constatação de que a autopoiese carece dos atributos imprescindíveis para a caracterização dos organismos biológicos levou Guattari a relacioná-la aos agenciamentos maquínicos sob um viés simultaneamente ontogenético e filogenético próprio “de uma mecanosfera que se superpõe à biosfera”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 50) Para Guattari, o núcleo maquínico do agenciamento coletivo (que, como analisamos, efetua ou semiotiza a máquina abstrata) é, a princípio, um núcleo autopoiético. Em seara filogenética, as máquinas se proliferam historicamente mediante rizoma; elas se auto-reproduzem evolutivamente em várias direções através de vetores ou paradigmas sociais distintos. É assim que estruturas relativamente simples, como, por exemplo, o brinquedo de uma criança do império chinês, desencadeiam o auge da produção de máquinas a vapor nos países da Europa setentrional. Neste ponto, basta lembrarmos do efeito borbololeta desenvolvido pela teoria do caos, segundo o qual o bater de asas de uma borboleta pode interferir no curso natural dos acontecimentos, e, quiçá, provocar um furação no outro lado do mundo. “É no cruzamento de universos maquínicos heterogêneos, de dimensões diferentes, de textura ontológica estranha, com inovações radicais, sinais de maquinismos ancestrais outrora esquecidos e depois reativados, que se singulariza o movimento da história. A máquina neolítica associa, entre outros componentes, a máquina da língua falada, as máquinas de pedra talhada, as máquinas agrárias fundadas na seleção dos grãos e uma protoeconomia aldeã...” (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 51)

Todavia, a dimensão ontogenética nos revelará que a protomáquina não evolui em ritmo programado, ela não faz rizoma de si mesma observando um padrão de desdobramento sincrônico, mas uma dispersividade “heterocrônica”, motivo pelo qual ela às vezes se perde no curso de seu encadeamento rizomático, no desabrochar de sua metamorfose, ou nos ecos de sua orquestra polifônica. “Essas virtualidades diagramáticas fazem-nos sair da caracterização da autopoiese maquínica por Varela em termos de individuação unitária, sem input nem output, e nos levam a enfatizar um maquinismo mais coletivo, sem unidade delimitada e cuja autonomia se adapta a diversos suportes de alteridade. A reprodutibilidade da máquina técnica, diferentemente da dos seres vivos, não repousa em sequências de codificação perfeitamente circunscritas em um genoma territorializado. Cada máquina tecnológica tem seus planos de concepção e de montagem mas, por um lado, estes mantém sua distância em relação a ela e, por outro lado, são remetidos de uma máquina a outra, de modo a constituir um rizoma diagramático que tende a cobrir globalmente a mecanosfera”. (GUATTARI, Féliz. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 53)  

O núcleo autopoiético das máquinas industriais na conjuntura de uma sociedade globalizada, a partir de cuja inter-relação heterocrônica com complexos maquínicos estruturalmente diferenciados ela consegue se impor despoticamente sobre eles, obstaculiza o potencial criativo de regimes de subjetividade não condizentes com seus imperativos de rostificação ou reterritorialização. É como se o capitalismo tivesse o “poder” de congestionar os poros do esquizo que se-lhe afiguram, de uma forma ou de outra, desfavoráveis, por onde escapam as ramificações ou derivações do rizoma, subordinando o funcionamento da mecanosfera ao seu alvitre. A oferenda do primeiro bode realizada pelos sacerdotes (é dizer, a sedentarização, o confinamento espacial dos despossuídos pelas classes abastadas) confere cada vez mais mobilidade e poder de locomoção à elite consumidora. O ziguezaguear dos agentes itinerantes detentores desse privilégio aquisitivo perfaz a hegemonia do significante (o deus-déspota), que já não precisa mais se alimentar de sacrifícios de bodes. Ele agora metaboliza velocidade, deslocamento, mobilidade ao mesmo tempo em que procura desesperadamente barrar, ou, pelo menos, limitar ao máximo, o alcance da linha de fuga do segundo bode, o bode emissário.

O deus-déspota, como já sabemos, é o capitalismo. Mas quem seria o bode emissário? Ora, o próprio núcleo autopoiético do agenciamento maquínico, encarregado de fazer proliferar oscilações nos continuums de intensidade, radicularizando universos de referência movediços que se traduzirão em subjetivações heterogenéticas. Ele estava tão perto de nós que não podíamos enxergá-lo, mas agora que estamos familiarizados com ele, podemos não só enxergá-lo como também sentir a realidade que partilhamos sendo engolida pela virtualidade do eterno devir autopoieticamente engendrada; sentimos a propulsão do impulso criativo sendo buscada fora do regime significante. Mas esse núcleo autopoiético deve ser encarado sob condições diversas das estabelecidas pelo cientificismo, que apresenta a biosfera como o grau máximo de desterritorialização do significante do signo, olvidando que além dela existe um horizonte virtual de infinitas possibilidades que se estende até a mecanosfera, fonte de todo o devir-criativo; afinal, é a virtualidade que atrai a estrutura da realidade para perto de si, e não o contrário. Nos dizeres de Guattari:

“A autopoiese maquínica se afirma como um para-si não humano através de focos de protossubjetivação parcial e desdobra um para-outrem sob a dupla modalidade de uma alteridade ecossistêmica “horizontal” (os sistemas maquínicos se posicionando como rizoma de dependência recíproca) e de um alteridade filogenética (situando cada estase maquínica atual de encontro a uma passadificada e de um Phylum de mutações por vir). Todos os sistemas de valor – religiosos, estéticos, científicos, ecosóficos... – se instauram nessa interface maquínica entre o atual necessário e o virtual possibilista. Os Universos de valor constituem assim os enunciadores incorporais de compleições maquínicas abstratas compossíveis às realidades discursivas. A consistência desses focos de protossubjetivação, portanto, só é assegurada na medida em que eles se encarnem, com mais ou menos intensidade, em nós de finitude, de grasping caósmico, que garantam, além disso, sua recarga possível de complexidade processual. Dupla enunciação, então, territorializada finita e incorporal infinita”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 66)

Depreende-se, portanto, que a tirania do capital especulativo se retroalimenta a partir da emissão de imperativos de mobilização a serem recepcionados por uma elite nômade extraterritorializada, em flagrante supressão de outros sistemas ou universos de valor, de outros focos produtores de subjetividade que se originam na teia caósmica da heterogênese. Ao reivindicar a hegemonia global sobre os demais regimes semiológicos, o capitalismo industrial deixa transparecer sua tendência inibitória, despótica e anti-criativa, esmagando sob sua bota quaisquer meios e modos de expressão que não contribuam, direta ou indiretamente, para o agigantamento de seu influxo totalitário, para a limitação ou enquadramento da virtualidade, responsável pelo desdobramento das cadeias rizomáticas, pela fabricação genuína de ramificações tuberculares.  Para além da mecânica diagramático-maquínica das máquinas abstratas e dos agenciamentos coletivos de enunciação, para além do continente assombrado do deus-déspota, a mecanosfera prolonga-se ao infinito, fornecendo continuamente possibilidades heumenêuticas mais complexas do que a interpretação realizada pelos sacerdotes e feiticeiros em proveito do único deus que conhecem: o deus-mercado. A caosmose surge como um paradigma ético-estético de superação ao tecno-cientificismo homogeneizante. 



REFERÊNCIAS:


BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências Humanas. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1999.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. editora 34: São Paulo, 1995

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol 2. editora 34: São Paulo, 1995.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Editora 34: São Paulo 2012.  

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