Por: Gustavo Aguiar
O advento do século XIX trouxe consigo uma erupção vulcânica
de clamores ávidos pelo desmantelamento de instituições tradicionais, que,
tendo expulsado os últimos resquícios de sacralidade e indecomponibilidade
(dantes pré-requisitos de constituição do vínculo matrimonial), sobejaram
acroamaticamente desnaturadas. A família, outrora concebida como a célula mater de uma comunidade tipicamente
pré-contratual, foi, de longe, a estrutura mais afetada pela imposição do dogma
positivista e seus consectários materialistas, ao ponto de podermos, com o
escólio de Zygmunt Bauman, inferir a obstetrícia de um amor líquido, caracterizado
pela flexibilidade ou mobilidade dos padrões de sociabilidade e interação:
“Com a nova fragilidade das estruturas familiares, com a
expectativa de vida de muitas famílias sendo mais curta do que a de seus
membros, com a participação em determinada linhagem familiar tornando-se
rapidamente um dos elementos “indetermináveis” da líquida era moderna e com a
adesão a uma das diversas redes de parentesco disponíveis transformando-se,
para um crescente número de indivíduos, numa questão de escolha – e uma
escolha, até segunda ordem ,revogável -, um filho pode ser ainda “uma ponte”
para algo mais duradouro. Mas a margem a que essa ponte conduz está coberta por
uma neblina , ninguém sabe ao certo que tipo de margem iria se revelar, nem se
da névoa emergiria uma terra suficientemente firme para sustentar um lar
permanente. Pontes que levam a lugar nenhum, ou a nenhum lugar em particular:
quem precisa delas? Para quê? Quem perderia seu tempo e seu bom dinheiro para
planejá-las e construí-las?” (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos, p. 28)
Uma das consequências mais desagregadoras da banalização do
liame familial para o esteio de uma sociedade ancorada em critérios rígidos de
tradição e ancestralidade é a insuficiência axiológica inerente a um eros
estritamente passional, volátil e efêmero, que se notabiliza pela
imediatividade da satisfação das necessidades libidinais. “Democatiza-se”, por
assim dizer, o impulso hedonístico de cariz utilitário, e o sexo torna-se uma
ferramenta a disposição de espíritos inferiores, diversamente do que se passava
nas sociedades aristocráticas, onde podemos abstrair, no tocante à prática
sexual, todo um cerimonial de comunhão com o sagrado. Não são raros os exemplos
de rituais de magia sexual oriundos dos mais diversificados segmentos da
linhagem esotérica.
Contudo, no horizonte instável deste Admirável Mundo Novo, a
sexologia, reivindicando para si o estatuto da mais insípida cientificidade, se
limita a fornecer explicações gerais de natureza bio-psicológica acerca dos
benefícios de uma vida sexualmente ativa, sem atentar para os pormenores
metafísicos que tornam essa prática verdadeiramente transcentente sob vários
aspectos, razão pela qual o sucesso de teorias pseudo-científicas como a
psicanálise freudiana ganham cada vez mais espaço nos círculos intelectuais de
inclinação burguesa e demo-liberal. Nesse sentido, Patrick Valas aduz que “os
sexólogos tiraram da filosofia o termo “libido” (traduzido como apetite,
desejo, aspiração, volúpia). Qualificando-o como libido sexualis, eles superpõem esse termo ao de “instinto
sexual”. Por sua vez, Freud tira esse
termo dos sexólogos para dar-lhe uma nova definição. É difícil encontrar em sua
obra um sentido unívoco para a libido, através das diferentes etapas das suas
elaborações, mas ele sempre faz dela um componente essencial da sexualidade”. (VALAS,
Patrick. As Dimensões do Gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo, p. 10)
Ainda a propósito da
sexologia, Julius Evola assevera que “o enquadramento da sexologia ressente-se, num
período mais recente e até nos atuais tratados com pretensões «científicas», da
herança do materialismo do século XIX, que teve por premissas o darwinismo e o
biologismo, ou seja, uma imagem completamente deformada e mutilada do homem. Do
mesmo modo que, segundo estas teorias, o homem teria derivado do animal por
«evolução natural», também a sua vida sexual e erótica era exposta em termos de
um prolongamento dos instintos animais, e explicada, no seu fundo último e
positivo, pelas finalidades puramente biológicas da espécie. Assim,
afirmou-se também neste domínio a tendência moderna de reduzir o superior ao
inferior, de explicar o superior pelo inferior — no caso presente, o humano pelo fisiológico e animal” (EVOLA, Julius. Metafísica do
Sexo, p. 14).
O perigo da redução do eros
a uma dimensão puramente hedonística induz ao equívoco de termos que, forçosamente,
considerá-lo o centro magnético das relações sexuais, como se valesse por si e em si mesmo, independente de um fator extrínseco que o legitimasse no espaço e no tempo. Em
Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, Arthur Schopenhauer designa a prole de um casal sob o
epíteto de “gênio da espécie”. Para ele, o elo de afetividade que liga um
parceiro ao outro durante o coito é insuficiente para justificar a estabilidade
de uma relação sexual, sendo, portando, um aspecto contingente de sua
constituição fisiológica.
O fundamento último do intercurso sexual é, em
Schopenhauer, o impulso de procriação. O gozo, ao revés, não passa de “uma
ilusão voluptuosa (...) que mistifica o varão, fazendo-o crer que encontrará
nos braços de uma mulher, cuja beleza lhe agrada, um gozo maior do que nos
braços de uma outra qualquer; ou, que direcionada exclusivamente para um único
indivíduo, convence-o com firmeza que a sua posse lhe daria uma felicidade
extrema. Em conseqüência, presume empregar esforço e sacrifício em favor do
próprio gozo, enquanto isso acontece apenas para a conservação do tipo regular
da espécie, ou em favor de uma individualidade bem determinada que deve chegar à
existência, e que só pode provir de tais pais”. (SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica
do Amor e Metafísica da Morte, p. 19)
Nesse contexto, a influência do darwinismo
no pensamento de Schopenhauer reveste-se de clareza meridiana, sobretudo se
considerarmos que, tendo em vista a parturição de uma prole fenotipicamente idealizada,
o varão buscaria sempre se relacionar sexualmente com uma parceira detentora de
“ingredientes” biológicos dos quais ele, enquanto indivíduo, prescinde para a
“neutralização mútua de duas individualidades que está em pauta [e] exige-se
que o grau determinado de masculinidade do homem corresponda exatamente
ao grau determinado de feminilidade da mulher, suprimindo-se com isso
aquelas unilateralidades de modo preciso. Assim, o homem mais masculino
procurará a mulher mais feminina e vice versa, e justamente desse modo
cada indivíduo procurará quem lhe corresponda no grau de sexualidade”.
(SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, pgs. 29 e 30)
O substrato darwinista
reside na lei de sobrevivência do mais forte, que ,transplantada para o terreno
do eros passional, significa que os mais belos devem ter primazia na seleção
para a prática do coito, posto ser a beleza o único traço imediatamente
perceptível em um ambiente de disputa pelo protagonismo da reprodução da
espécie. Sobreleva destacar a primazia da beleza somática em detrimento até mesmo das virtudes contemplativas (v.g. o intelecto), um dos pontos-chave para a compreensão do amor passional sob a perspectiva schopenhaueriana.
Entretanto, por mais sedutora que se nos
afigure a proposta de Schopenhauer sobre um potencial “Gênio das espécies”, ela,
ainda assim, peca por não conseguir explicar o fato de existirem, em nosso meio,
tantos seres imperfeitos a despeito do homem, em seu rastreamento inconsciente
por um ideal de perfectibilidade cada vez mais acentuado, almejar parceiros que
lhe correspondam biologicamente. Se, por um lado, é compreensível que o
filósofo frankfurtiano tenha elegido as gerações vindouras como fonte de
legitimidade do ato sexual (afinal, tal concepção, se rigorosamente analisada,
nos reconduzirá aos princípios da potência e do ato, balizadores da metafísica
aristotélica, também presentes, ainda que sob outra nomenclatura, na ontologia
heideggeriana), por outro, essas coordenadas soam demasiadamente perfunctórias sob
um ponto de vista esotérico, habituado a julgar as coisas a partir de uma
posição superior.
Nas palavras sempre lúcidas de Julius
Evola, “poderemos, ainda, citar numerosos casos em que uma atração intensa,
mesmo «fatal», se gerou entre seres que de forma alguma representam um optimum
para fins de procriação conformes à espécie; por isso, o impulso schopenhauriano,
mesmo relegado para o inconsciente, surge-nos relativa ou totalmente
inexistente. Trata-se, pois, de algo diferente: com base na teoria finalística mencionada,
deveria em rigor encontrar-se uma sexualidade reduzida nos exemplares menos
nobres da espécie humana, e no entanto é neles que, embora sob formas primitivas,
ela é maior, sendo tais exemplares os mais fecundos. Poderia, de fato, dizer-se
que o «gênio da espécie», com as suas manhas ocultas e as suas armadilhas, é
bastante inábil e precisa muito de se aperfeiçoar, ao considerarmos que através
do amor físico o mundo está povoado essencialmente de subprodutos da espécie humana”.
(EVOLA, Julius, Metafísica do Sexo, p. 23)
Em outras palavras: a assunção da
influência abstrata de um gênio da espécie sobre todo o processo de seleção
natural através da prática do coito carece de verificação empírica, visto que,
pela experiência crua, as estirpes inferiores são as que mais indiscriminadamente
se relacionam entre si, ao ponto de, no marco de uma hodiernidade cada vez mais
decadente e esclerótica, ser possível falar numa espécie de “monopolização” libidinal
dos meios de somatização do prazer vertido em gozo puro e simples. Isso explica
como práticas outrora condenáveis como o incesto, a pederastia e a promiscuidade
se tornaram, em nossos dias, amplamente difundidas e até mesmo incentivadas por
novelas, telejornais e outros setores estratégicos da mass media. “Ao desviar o exame do domínio dos dados da consciência
para o âmbito da experiência, uma observação assaz banal dir-nos-á que no
domínio do sexo se produz qualquer coisa de parecido com o que se passa no
domínio alimentar. Um homem que não seja primitivo não escolhe ou prefere
simplesmente os alimentos que o organismo pode considerar como os que melhor
lhe convêm, isto sucede não porque o homem seja «depravado» mas simplesmente
porque é homem”. (EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo, p. 22)
A todas as considerações até aqui expendidas,
soma-se a dinâmica de funcionamento do mercado global em uma sociedade capitalista
e obteremos, como resultado, a degeneração do eros contemplativo de procedência
helênica em um eros passional (do grego pathos,
que significa doença), incapaz de dialogar com instâncias exteriores ao estágio
avançado de seu definhamento vegetativo. É de rematada estupidez (pra não dizer
de uma violação frontal ao bom senso) insistir na tese de que a crença cega no
progresso repercutiu única e exclusivamente nas searas em que a tecnologia de
produção e reprodução das técnicas de industrialização estiveram presentes. A
sociedade industrial colonizou não só os meios e formas de vida, mas também
aqueles aspectos mais íntimos da existência humana, dentre eles, a sexualidade.
De todo o acima exposto, pode-se fazer
intervir, a título de curiosidade, elucidações pertinentes ao universal simbólico do sexo, em
consonância com doutrinas das religiões extremo-orientais, reflexões que
escapam aos limites positivistas de uma análise rigorosamente causal-naturalista.
Nesse sentido, a preocupação central das mencionadas correntes metafísicas
volta-se para o reconhecimento da unidade estática por trás de uma ordem de
multiplicidades dinâmicas que desfilam perante a intuição sensorial. Este é o
denominador comum em todas as crenças do Extremo Oriente, consoante se extrai
da seguinte passagem: “Não existe doutrina metafísica e tradicional completa,
que tenha considerado a Díade como supremo ponto de referência da sua visão do
mundo. A tradição do Extremo Oriente conhece, como já assinalamos, para além do
yin e do yang, a <<Grande Unidade>> - Tai-i ou Tai-ki. Plotino fala do Um superior
e anterior à dualidade divina de novo
e vÂn, de ser e da potência-vida. O
tantrismo conhece o Nirgûna-Brahman ou um outro princípio equivalente para além
da díade Çiva-Çâkti, etc. Este ponto de referência superior impede que se
reconheça uma dignidade igual aos dois princípios. O princípio masculino, o yang,
Çiva ou o ser como elemento da díade, reflete o Um, o ser transcendente; representa
e incorpora este Um no processo da manifestação universal, na relatividade, na
corrente das formas (em Plotino, na qualidade de Logos). Quanto à «natureza»,
podemos dizer em termos teológicos que não constitui um princípio que seja
coexistente com Deus, mas que deriva de Deus e tem, portanto, uma «realidade
secundária»”. (EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo, p. 156)
O Uno, princípio estático da virilidade
urânico-solar se sobressai ao múltiplo como representação lunar de uma
feminilidade dinâmica e fragmentária, principalmente em sociedades de índole
patriarcal, em que o sentido de coerência da práxis sexual decorre da suprema síntese
orgânica de elementares heterogêneos. Somente a partir destes pressupostos é
que podemos deduzir a existência de uma harmonia entre ambos os extremos, que
atinge seu apogeu no instante do gozo. Portanto, o gozo não seria nem uma
ilusão provocada pelo gênio das espécies, conforme assinala Schopenhauer, nem
uma sensação puramente biológica através da qual dois sujeitos compartilham um
prazer essencialmente hedônico e utilitarista, mas algo mais elevado na hierarquia
espiritual: o momentum de
externalização da comunhão com o sagrado em sua etérea unidade.
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2004.
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte. Martins Fontes: São Paulo, 2000.
VALAS, Patrick. As Dimensões do Gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2001.
EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo. Edições Afrodite: Lisboa, 1976.
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