Por: Gustavo Aguiar
O que caracteriza a modernidade enquanto paradigma é, dentre
outros fatores, a ausência de delimitação conceitual acerca do significado de
espiritualidade. Em semiótica, isso nos remete ao esgotamento da possibilidade
de um determinado regime de signos e sinais atuar sobre seu próprio arcabouço
semântico, sobre a essência mesma de seu devir comunicacional.
O giro cartesiano inaugurou uma época em que as latitudes do
cogito medem-se com a régua de um racionalismo
hermeticamente encapsulado dentro de si mesmo, corpos planetários orbitando a
cabeça sem cérebro de um deus ex machina
flutuante, terrível e onipresente. E, por mais que os astros (pensamentos)
desejem ardentemente se verem libertos de sua prisão gravitacional, o totem
secular estará sempre lá para bloqueá-los, magnetizá-los, para neutralizar a
manifestação de mitos e ritos de um tribalismo moribundo, dessacralizado ou destotemizado.
A política transubstancia-se em um
festival de prosopopeias retóricas e jargões humanitários através dos quais
cidadãos pretensamente livres e iguais ligam-se por vínculos pragmáticos de
instrumentalidade, em detrimento da solidariedade típica das sociedades arcaicas.
Afinal, os novos deuses, tendo sobrepujado os antigos, querem ser tão adorados quanto
eles. A nova política (ou pós-política,
em terminologia duginiana) torna-se embrionária da sociedade do espetáculo, do
império do simulacro.
Ao exorcizar a influência do mito da estrutura da realidade
sócio-ideológica, a modernidade, mais do que misticamente escamoteada, vê-se
destituída de seus principais vetores político-pedagógicos. O Estado como
encarnação da hierarquia política deixa de ser o reflexo da alma humana
(Platão) para se tornar um conjunto de aparelhos mais ou menos articulados em
prol de uma auto-perpetuação hegemônica (Althusser). Princípios técnico-científicos
passam a orientar a elaboração de prognósticos desencadeadores de uma
multiplicação de polêmicas tautológicas, que retornam sempre ao ponto zero, ao
Zero absoluto, figuração hipostática de um procedimento mecânico de dissecação que
se auto-reproduz inconscientemente na esteira de um regresso ad infinitum. “O zero é o corpo sem
órgãos do Homem dos lobos. Se o inconsciente não conhece negação, é porque nada
há de negativo no inconsciente, mas aproximações e distanciamentos indefinidos
do ponto zero, o qual não exprime de forma alguma a falta, mas a positividade
do corpo pleno como suporte e suposto (porque um “afluxo” é necessário para
tão-somente significar a ausência de intensidade)”. (DELEUZE, Felix. GUATTARI,
Gilles. Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, p. 43)
O mito, por sua vez, não está preso a este regresso
circular, porquanto remete o intérprete a aspirações maiores do que o dissídio
pelo dissídio. A finalidade do mito não é produzir certezas apodícticas, mas oferecer
questionamentos móveis pertinentes ao espaço cultural no seio do qual ele é engendrado.
Ao contrário do Corpo sem Órgãos da ciência profana, mitos são intensidade
pura, na medida em que fazem circular projeções arquetípicas nos recônditos do inconsciente
coletivo.
Todavia, a carga política do mito não deflui de sua
pretensão de autenticidade, e sim de sua pretensão de verossimilhança. Não
interessa se à ordem cósmico-simbólica correspondem entidades metafísicas, ou
se para cada sensação humana há uma deidade supra-humana, mas se tudo o que
sentimos e testemunhamos são representações vivas de sensações e testemunhos emitidos
por uma autoridade transcendental cuja majestade não pode ser perquirida ou
reivindicada, em absoluto.
Neste diapasão, Julius Evola, preleciona que “a
natureza esgota-se hoje num conjunto de leis puramente pensadas acerca de
diversos <<fenómenos>> - luz, eletricidade, calor, etc – que
desfilam perante nós, carentes de todo o significado espiritual, fixadas
unicamente por relações matemáticas. Pelo contrário, no mundo tradicional, a
natureza era não <<pensada>>, mas sim vivida como um grande corpo animado e sagrado, <<expressão
visível do invisível>> [...] O mito
não era então uma ideação arbitrária e fantástica: procedia de um processo necessário, em que as forças que
constituem as coisas actuavam sobre a faculdade plástica da imaginação,
parcialmente difundida pelos sentidos corpóreos, até se dramatizarem em imagens
e figuras que se insinuavam na trama da experiência sensorial e a completavam
com um toque de <<significado>>” (EVOLA, Julius. A Tradição
Hermética, p. 31).
Ora, o significado pedagógico do mito dimana do intercâmbio
dialético entre realidade catagógica e idealidade anagógica, instâncias
mutuamente complementares que o racionalismo cientificista se esforça
obstinadamente em separar. É neste interregno que a comunicação deixa de ser o transporte
automático de informações de um ponto X para um ponto Y e se torna o edifício
de uma práxis política espiritualmente coordenada, criando uma ponte entre ação
e imaginação.
Desde que a noção tipicamente progressista e anti-tradicional de que a história das civilizações flui através de uma cronologia linear privou o homem do contato com experiências míticas, a política parece moldar a si mesma em um ambiente de discursividade imune à intervenção humana, na medida em que questões cosmogonicamente relevantes cedem espaço a uma erística niilista de rasa profundidade investigativa. Em oportuna observação, Giorggio Locchi pontifica que “quando o mito se esteriliza, quando esses arquétipos ideais não são mais sentidos como tal, deixa de haver laço comunitário, de modo que, no limite, todo o indivíduo é considerado como ideal em si, pelo simples facto de ser um indivíduo. O que resta para manter unido aquilo que se tornou uma sociedade, é o laço sempre precário e contingente criado pela aliança dos interesses egoístas de grupos de indivíduos, de classes, de partidos, de capelas, de seitas. A verdadeira dimensão humana, que é dimensão histórica, está perdida; a sociedade de massa já não se preocupa, verdadeiramente, nem com o passado nem com o futuro, apenas vive no presente e para o presente. Assim, ela já não faz política, apenas faz economia, e economia da pior espécie, condicionando todos os reflexos sociais”.
Uma sociedade impossibilitada de construir significados a partir
de sua reserva mitológica é uma sociedade moral, simbólica e politicamente castrada
em que noções tradicionalmente arraigadas sofrem um violento processo de
parlamentarização. Instâncias deliberativas, órgãos de controle e os demais
setores de uma burocracia kafkiana convenientemente vocacionada para o
afastamento da participação cidadã da vida política segue justificando seu
miserável vácuo existencial, seu repúdio a toda e qualquer expressão gnóstica
ou gnoseológica. Não podemos nos abster de salientar a contribuição do
liberalismo para a manutenção desse estado de coisas, afinal, “o liberalismo,
que sempre havia insistido na minimalização da política, tomou a decisão de
abolir a política completamente após seu triunfo”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta
Teoria Política, p. 15)
Mito e política pressupõem-se reciprocamente, da mesma forma que a
dualidade corpo-alma encerram uma unidade numênica em acepção leibnizeana. Diferentemente
da universalibilidade de um axioma científico, insuscetível de flexibilizações
e imune a qualquer influência criativa, os mitos são produtos espontâneos da
linguagem (não de jogos de linguagem), e a linguagem, por sua vez, só desempenha
sua função comunicativa de maneira satisfatória graças à influência mítica.
Parece haver, entre o mito e a política, uma relação análoga à que
Deleuze e Guattari identificam entre enunciado e ação: uma relação imanente de
redundância que nos remete sempre a uma palavra de ordem (a um mandamento
disciplinar), na medida em que a estrutura linguística predominante no bojo de uma
determinada comunidade só consegue desempenhar suas funções precípuas a partir
desta relação. “A relação entre o enunciado e o ato é interior, imanente, mas
não existe identidade. A relação é, antes, de redundância. A palavra de ordem é, em si mesma, redundância do ato
e do enunciado. Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de
nos dizerem o que é “necessário” pensar, reter, esperar, etc. A linguagem não é
informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação, mas – o que é
bastante diferente – transmissão de palavras de ordem, seja de um enunciado a
um outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que um enunciado realiza
um ato e que o ato se realiza no enunciado”. (DELEUZE, Gilles. GUATTARI. Felix.
Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 12)
É precisamente esta
correspectividade mitopolitológica que nos permite deduzir o caráter pedagógico
do mito, que se materializa graças a um funcionamento adequado das instituições
políticas. Talqualmente os meios de comunicação de massa, mitos veiculam
imperativos comportamentais. O que os diferencia dos veículos de comunicação é
que, ao passo que estes o fazem com escopos alienatórios (de transportar para
fora da realidade sujeitos que pensam estar vivendo dentro dela, geralmente a
serviço de um determinado partido ou causa), o mito o faz com o condão de fornecer
as diretrizes de um programa político inacabado, mas, ainda assim, suscetível
de aprimoramentos.
Farto de todas essas elucubrações, o deus ex machina, com a fúria de mil trovões, pede a cabeça do autor em
uma bandeja prateada. Ele quer comê-la, lubrificar suas engrenagens com o
líquido encefálico de seus circuitos cerebrais. Ele se sente hediondamente
ameaçado, e isso constitui motivo suficiente para que solte os sabujos aguerridos
sobre a carcaça deste pobre mancebo que vos fala. Reinar no vácuo é, para ele,
mais interessante do que servir na ilha da fantasia, esse reduto pestilento de
mitômanos, rebeldes e sicofantas. E, diante de tamanho horror antropofágico,
caem as cortinas e o espetáculo se encerra antes mesmo de ter iniciado. Chegará
um dia em que o tirano, em seu solitário trono de gelo, será forçado a devorar seus
próprios membros por uma questão de sobrevivência, a menos que seus inimigos retornem
antes para pulverizá-lo.
REFERÊNCIAS:
DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política. Editora Austral: Curitiba-PR, 2012
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, editora 34: São Paulo, 1995
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, editora 34: São Paulo, 1995
EVOLA, Julius. A Tradição Hermética. edições 70
http://legio-victrix.blogspot.com.br/2011/01/mito-e-comunidade.html
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