quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A Importância do Mito como Vetor Político-pedagógico

Por: Gustavo Aguiar


O que caracteriza a modernidade enquanto paradigma é, dentre outros fatores, a ausência de delimitação conceitual acerca do significado de espiritualidade. Em semiótica, isso nos remete ao esgotamento da possibilidade de um determinado regime de signos e sinais atuar sobre seu próprio arcabouço semântico, sobre a essência mesma de seu devir comunicacional.

O giro cartesiano inaugurou uma época em que as latitudes do cogito medem-se com a régua de um racionalismo hermeticamente encapsulado dentro de si mesmo, corpos planetários orbitando a cabeça sem cérebro de um deus ex machina flutuante, terrível e onipresente. E, por mais que os astros (pensamentos) desejem ardentemente se verem libertos de sua prisão gravitacional, o totem secular estará sempre lá para bloqueá-los, magnetizá-los, para neutralizar a manifestação de mitos e ritos de um tribalismo moribundo, dessacralizado ou destotemizado.  A política transubstancia-se em um festival de prosopopeias retóricas e jargões humanitários através dos quais cidadãos pretensamente livres e iguais ligam-se por vínculos pragmáticos de instrumentalidade, em detrimento da solidariedade típica das sociedades arcaicas. Afinal, os novos deuses, tendo sobrepujado os antigos, querem ser tão adorados quanto eles.  A nova política (ou pós-política, em terminologia duginiana) torna-se embrionária da sociedade do espetáculo, do império do simulacro.  

Ao exorcizar a influência do mito da estrutura da realidade sócio-ideológica, a modernidade, mais do que misticamente escamoteada, vê-se destituída de seus principais vetores político-pedagógicos. O Estado como encarnação da hierarquia política deixa de ser o reflexo da alma humana (Platão) para se tornar um conjunto de aparelhos mais ou menos articulados em prol de uma auto-perpetuação hegemônica (Althusser). Princípios técnico-científicos passam a orientar a elaboração de prognósticos desencadeadores de uma multiplicação de polêmicas tautológicas, que retornam sempre ao ponto zero, ao Zero absoluto, figuração hipostática de um procedimento mecânico de dissecação que se auto-reproduz inconscientemente na esteira de um regresso ad infinitum. “O zero é o corpo sem órgãos do Homem dos lobos. Se o inconsciente não conhece negação, é porque nada há de negativo no inconsciente, mas aproximações e distanciamentos indefinidos do ponto zero, o qual não exprime de forma alguma a falta, mas a positividade do corpo pleno como suporte e suposto (porque um “afluxo” é necessário para tão-somente significar a ausência de intensidade)”. (DELEUZE, Felix. GUATTARI, Gilles. Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, p. 43)

O mito, por sua vez, não está preso a este regresso circular, porquanto remete o intérprete a aspirações maiores do que o dissídio pelo dissídio. A finalidade do mito não é produzir certezas apodícticas, mas oferecer questionamentos móveis pertinentes ao espaço cultural no seio do qual ele é engendrado. Ao contrário do Corpo sem Órgãos da ciência profana, mitos são intensidade pura, na medida em que fazem circular projeções arquetípicas nos recônditos do inconsciente coletivo.
Todavia, a carga política do mito não deflui de sua pretensão de autenticidade, e sim de sua pretensão de verossimilhança. Não interessa se à ordem cósmico-simbólica correspondem entidades metafísicas, ou se para cada sensação humana há uma deidade supra-humana, mas se tudo o que sentimos e testemunhamos são representações vivas de sensações e testemunhos emitidos por uma autoridade transcendental cuja majestade não pode ser perquirida ou reivindicada, em absoluto.

Neste diapasão, Julius Evola, preleciona que “a natureza esgota-se hoje num conjunto de leis puramente pensadas acerca de diversos <<fenómenos>> - luz, eletricidade, calor, etc – que desfilam perante nós, carentes de todo o significado espiritual, fixadas unicamente por relações matemáticas. Pelo contrário, no mundo tradicional, a natureza era não <<pensada>>, mas sim vivida como um grande corpo animado e sagrado, <<expressão visível do invisível>> [...] O mito não era então uma ideação arbitrária e fantástica: procedia de um processo necessário, em que as forças que constituem as coisas actuavam sobre a faculdade plástica da imaginação, parcialmente difundida pelos sentidos corpóreos, até se dramatizarem em imagens e figuras que se insinuavam na trama da experiência sensorial e a completavam com um toque de <<significado>>” (EVOLA, Julius. A Tradição Hermética, p. 31).

Ora, o significado pedagógico do mito dimana do intercâmbio dialético entre realidade catagógica e idealidade anagógica, instâncias mutuamente complementares que o racionalismo cientificista se esforça obstinadamente em separar. É neste interregno que a comunicação deixa de ser o transporte automático de informações de um ponto X para um ponto Y e se torna o edifício de uma práxis política espiritualmente coordenada, criando uma ponte entre ação e imaginação.  

Desde que a noção tipicamente progressista e anti-tradicional de que a história das civilizações flui através de uma cronologia linear privou o homem do contato com experiências míticas, a política parece moldar a si mesma em um ambiente de discursividade imune à intervenção humana, na medida em que questões cosmogonicamente relevantes cedem espaço a uma erística niilista de rasa profundidade investigativa. Em oportuna observação, Giorggio Locchi pontifica que “quando o mito se esteriliza, quando esses arquétipos ideais não são mais sentidos como tal, deixa de haver laço comunitário, de modo que, no limite, todo o indivíduo é considerado como ideal em si, pelo simples facto de ser um indivíduo. O que resta para manter unido aquilo que se tornou uma sociedade, é o laço sempre precário e contingente criado pela aliança dos interesses egoístas de grupos de indivíduos, de classes, de partidos, de capelas, de seitas. A verdadeira dimensão humana, que é dimensão histórica, está perdida; a sociedade de massa já não se preocupa, verdadeiramente, nem com o passado nem com o futuro, apenas vive no presente e para o presente. Assim, ela já não faz política, apenas faz economia, e economia da pior espécie, condicionando todos os reflexos sociais”.

Uma sociedade impossibilitada de construir significados a partir de sua reserva mitológica é uma sociedade moral, simbólica e politicamente castrada em que noções tradicionalmente arraigadas sofrem um violento processo de parlamentarização. Instâncias deliberativas, órgãos de controle e os demais setores de uma burocracia kafkiana convenientemente vocacionada para o afastamento da participação cidadã da vida política segue justificando seu miserável vácuo existencial, seu repúdio a toda e qualquer expressão gnóstica ou gnoseológica. Não podemos nos abster de salientar a contribuição do liberalismo para a manutenção desse estado de coisas, afinal, “o liberalismo, que sempre havia insistido na minimalização da política, tomou a decisão de abolir a política completamente após seu triunfo”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 15)

Mito e política pressupõem-se reciprocamente, da mesma forma que a dualidade corpo-alma encerram uma unidade numênica em acepção leibnizeana. Diferentemente da universalibilidade de um axioma científico, insuscetível de flexibilizações e imune a qualquer influência criativa, os mitos são produtos espontâneos da linguagem (não de jogos de linguagem), e a linguagem, por sua vez, só desempenha sua função comunicativa de maneira satisfatória graças à influência mítica.

Parece haver, entre o mito e a política, uma relação análoga à que Deleuze e Guattari identificam entre enunciado e ação: uma relação imanente de redundância que nos remete sempre a uma palavra de ordem (a um mandamento disciplinar), na medida em que a estrutura linguística predominante no bojo de uma determinada comunidade só consegue desempenhar suas funções precípuas a partir desta relação. “A relação entre o enunciado e o ato é interior, imanente, mas não existe identidade. A relação é, antes, de redundância. A palavra de ordem é, em si mesma, redundância do ato e do enunciado. Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos dizerem o que é “necessário” pensar, reter, esperar, etc. A linguagem não é informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação, mas – o que é bastante diferente – transmissão de palavras de ordem, seja de um enunciado a um outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que um enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado”. (DELEUZE, Gilles. GUATTARI. Felix. Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 12) 

É precisamente esta correspectividade mitopolitológica que nos permite deduzir o caráter pedagógico do mito, que se materializa graças a um funcionamento adequado das instituições políticas. Talqualmente os meios de comunicação de massa, mitos veiculam imperativos comportamentais. O que os diferencia dos veículos de comunicação é que, ao passo que estes o fazem com escopos alienatórios (de transportar para fora da realidade sujeitos que pensam estar vivendo dentro dela, geralmente a serviço de um determinado partido ou causa), o mito o faz com o condão de fornecer as diretrizes de um programa político inacabado, mas, ainda assim, suscetível de aprimoramentos. 

Farto de todas essas elucubrações, o deus ex machina, com a fúria de mil trovões, pede a cabeça do autor em uma bandeja prateada. Ele quer comê-la, lubrificar suas engrenagens com o líquido encefálico de seus circuitos cerebrais. Ele se sente hediondamente ameaçado, e isso constitui motivo suficiente para que solte os sabujos aguerridos sobre a carcaça deste pobre mancebo que vos fala. Reinar no vácuo é, para ele, mais interessante do que servir na ilha da fantasia, esse reduto pestilento de mitômanos, rebeldes e sicofantas. E, diante de tamanho horror antropofágico, caem as cortinas e o espetáculo se encerra antes mesmo de ter iniciado. Chegará um dia em que o tirano, em seu solitário trono de gelo, será forçado a devorar seus próprios membros por uma questão de sobrevivência, a menos que seus inimigos retornem antes para pulverizá-lo.   



REFERÊNCIAS:


DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política. Editora Austral: Curitiba-PR, 2012

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, editora 34: São Paulo, 1995

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, editora 34: São Paulo, 1995

EVOLA, Julius. A Tradição Hermética. edições 70

http://legio-victrix.blogspot.com.br/2011/01/mito-e-comunidade.html

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