segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Uma Leitura Ôntico-ontológica do Dasein como Principal Sujeito Histórico da Quarta Teoria Política: uma Resposta a Álvaro Hauschild

Por: Gustavo Aguiar



Juramento de Svarog, por Boris Olshansky

Em primoroso artigo intitulado Da Natureza do Tempo [1], que rendeu uma publicação em seu blog Forças da Angústia, Álvaro Hauschild inaugurou um contraponto relativamente à concepção por mim sufragada em A Ciclicidade do Tempo Histórico sob o Prisma do Neoeurasianismo da Quarta Teoria Política, de acordo com a qual as civilizações modernas, ao contrário das sociedades pré-históricas, possuem um caráter eminentemente linear, sendo a este último reputado a causa do seu colapso iminente. Sustentei, com base na Quarta Teoria Política, que a adoção de uma compreensão cíclica do tempo histórico poderia constituir uma maneira eficaz de driblarmos este colapso em um mundo que evolui em ritmo alucinante, e que, por isto mesmo, perdeu controle sobre o desenrolar de seu próprio processo evolutivo.

Hauschild, a outro giro, recorreu à ontologia heideggeriana para provar que a natureza metafísica (a-civilizacional) do tempo coloca em xeque o dualismo ôntico: ciclicidade/linearidade, tornando impossível, ou, pelo menos, inviável, compreender o fenômeno temporal como um desdobramento contínuo através de linhas ou ciclos de historicidade. Isso, nas palavras de Hauschild, “aniquila a concepção de tempo histórico”, seja ela circular ou unidirecional.  Afinal, o Dasein (Ser-Aí) é, em Heidegger, o sentido existencial do eterno retorno, algo que vai se construindo a si mesmo genuína e eventicamente, é dizer: sem um início e fim prefixados. Hauschild traça ainda um paralelo entre o Dasein (o estar jogado aí no mundo) e a metáfora nietzschiana que descreve o homem como uma corda entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo. 

Meu referencial teórico nesta réplica continua sendo a Quarta Teoria Política do professor Alexandr Dugin, desta vez centrada no Dasein (o macro-sujeito sócio-político da referia teoria), em respeito à delimitação do objeto da querela ora entabulada. Ademais, cumpre assinalar, preambularmente, que não atacaremos o mérito da natureza temporal (qualitativa/quantitativa) da escatologia cristocêntrica, uma vez que, no que concerne a este tópico, endossamos cada palavra de Hauschild e até incentivamos aprofundamentos subsequentes, dado o interesse de possíveis neófitos pela matéria.

De introito, calha descrever o entendimento duginiano acerca do “sujeito composto” da Quarta Teoria Política, qual seja: o Dasein. O Dasein surge, para os escopos da Quarta Teoria Política, como a negação geral das concepções individualizantes dos agentes históricos das três teorias políticas clássicas (liberalismo, marxismo-leninismo e nazi-fascismo), cujos sujeitos são, respectivamente: o indivíduo, a classe social e o Estado-raça. Distintamente de tais abordagens dogmáticas, atômicas e isoladas, o Dasein oportuniza uma espécie de recomposição holística de escalas de temporalidade, em negação explícita à tese que coloca os três êxtases do tempo (passado, presente e futuro) em uma relação hierárquica, verticalizada. Nos dizeres de Dugin:

“A Quarta Teoria Politica constrói e reconstrói a sociedade por trás dos axiomas modernos. Por isso os elementos das diferentes formas politicas podem ser usados na 4a Teoria Politica sem nenhuma conexão com a escala de tempo. Não há fases nem épocas - mas apenas preconceitos e conceitos. Nesse contexto, construções teológicas, antiguidades, castas e outros aspectos da sociedade tradicional são apenas uma das variantes possíveis; juntamente com o socialismo, a teoria keynesiana, mercados livres, democracia parlamentar, ou "nacionalismo". Elas são apenas formas, mas não estariam relacionadas com a topografia implícita do 'tempo histórico objetivo'. Não há tal coisa! Se o tempo é histórico, ele não pode ser objetivo. O Dasein diz o mesmo. O Dasein é o sujeito da 4a Teoria Politica. O Dasein pode ser recuperado pelo refinamento da verdade existencial da superestrutura ontológica. Dasein e algo que institucionaliza o tempo. Durand institucionaliza o tempo pelo Traiectum em sua topografia. Traiectum/Dasein não é uma função do tempo, mas o tempo é uma função do Traiectum/Dasein. Por isso o tempo é algo institucionalizado pela política no contexto da Quarta Teoria Politica. Tempo é uma categoria política. A política do tempo é um pré-conceito da forma politica. A Quarta Teoria Politica abriu uma perspectiva única: se nós compreendemos o principio da reversibilidade do tempo, nós não somente somos capazes de compor o projeto de uma futura sociedade, mas somos capazes de compor toda uma gama de projetos de diferentes sociedades futuras. Assim nós seriamos capazes de sugerir algumas estratégias não lineares para uma nova institucionalização do mundo”. (DUGIN, A Quarta Teoria Política, pgs. 75 e 76)

Impossível deixar de notar que a mencionada função de institucionalização do tempo histórico desempenhada pelo Dasein atua, ainda que de maneira bastante residual e contingente, sobre o espectro civilizacional – senão não haveria sequer o que ser institucionalizado politicamente -, sobretudo se considerarmos que, na concepção duginiana, o coeficiente espacial e geopolítico do Dasein é sucedâneo da inclusão deste último em um novo círculo hermenêutico-filosófico vocacionado para o desvelamento de um pretenso Quarto Nomos da Terra de Carl Schmitt (a este respeito, remeto o leitor ao artigo de minha autoria O Horizonte Cósmico de Possibilidades da Quarta Teoria Política Rumo à Superação da Pós-Modernidade, publicado, originalmente, no blog Legio Victrix e traduzido para o espanhol pela 4TPes, pela Página Transversal e pela Elespiadigital [2]).

Obviamente não queremos dizer com isto que a ontologia heideggeriana agrega no Dasein um matiz civilizatório, até mesmo porque, em Heidegger, o sentido do ser intramundano é buscado no horizonte de temporalidade mediana da pré-sença (pré-sença esta na qual a espacialidade é inerente, anterior ao espaço métrico ou geofísico) é dizer, fora da moldura estético-transcendental kantiana, que compreende o espaço [intuição externa] e o tempo [intuição interna] como condições de possibilidade do conhecimento apriorístico. Inclusive, uma das omissões que Heidegger, em seu retrospecto aniquilatório acerca de concepções ontologicamente insatisfatórias atribui Kant é a não-formulação de uma ontologia da pré-sença, o que, segundo o autor se deve à influência do racionalismo cartesiano no pensamento do filósofo de Königsberg, consoante se extrai da seguinte passagem:

“Na medida em que assume a posição ontológica de Descartes, Kant omite uma coisa essencial:  uma ontologia da pré-sença. No sentido das tendências mais próprias do pensamento de Descartes, essa omissão é decisiva. Com o “cogito sum”, Descartes pretende dar à filosofia um fundamento novo e sólido. O que, porém, deixa indeterminado nesse princípio “radical” é o modo de ser da res cogitans, ou, mais precisamente, o sentido do ser do “sum”. A elaboração dos fundamentos ontológicos implícitos no “cogito sum” constitui o ponto de parada na segunda estação a caminho de um retorno destrutivo à história da ontologia. A interpretação comprova por que Descartes não só teve que omitir a questão do ser como também mostra por que se achou dispensado da questão sobre o sentido do ser do cogito pelo fato de ter descoberto sua “certeza absoluta”. (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. I, p. 53)     

Com isto evitamos o equívoco de confundir a temporalidade heideggeriana com os prolegômenos kantianos da Crítica da Razão Pura. Verdade assiste a Hauschild quando ele diz que utilizar o Dasein para escopos civilizatórios implicaria em reduzir o alcance de suas potencialidades à dimensão das ciências ônticas, tolhendo, assim, os fundamentos ontológicos do mesmo. Todavia, impende salientar que questões de ordem puramente especulativas não deveriam constituir óbice à apropriação metodológica de um conceito aberto como o de Ser-Aí, e por “aberto” queremos dizer passível de ressignificações e remodelizações pragmático-descritivas. Neste diapasão, poderíamos dizer que a Quarta Teoria Política não compreende o Dasein em sua dimensão semântica pura ou universal, na medida em que reconhece, com amparo na fenomenologia husserliana, uma plurissubjetividade de concepções antropológico-existenciais de projetos de vida boa. Seria como se cada povo possuísse um Dasein, ou um entendimento particularizado do significado do ser nos entes, o que nos levaria a pensar o Dasein como instância ôntico-ontológica gerativa de pré-conceitos. É o que se extrai do seguinte excerto:

“Aderentes da Quarta Teoria Política devem agir passo a passo: se nós simplesmente argumentarmos a reversibilidade do tempo e o Dasein como sujeito da 4ª Teoria Política, seria o primeiro e principal passo. Assim, nós liberaríamos espaço para os pré-conceitos. Nós podemos definir muitos pré-conceitos com relação à reversibilidade do tempo e Dasein/Traiectum, por isso podemos definir vários conceitos políticos do tempo e cada um deles pode ser conectado em um atual projeto político, de acordo com os princípios da Quarta Teoria Política. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 76)

Os pré-conceitos discriminam concepções de temporalidade politicamente institucionalizadas no bojo de cada comunidade política, sem prejuízo da assunção de vetores axiológico-existenciais distintos. Não seria próprio dizer, então, que cada povo etno-culturalmente diferenciado possui um Dasein. Mas nos parece legítimo supor a existência de uma multiplicidade de concepções do que, em última instância, viria a significar o Dasein, e o que fundamenta esta multiplicidade é precisamente o coeficiente geopolítico-civilizacional multipolar da Quarta Teoria Política. Isso, evidentemente, não constitui uma ruptura total com o entendimento de Hauschild de que o Ser-Aí deve ser considerado em sentido heideggeriano de existência pura ou transcendente, mas tão-somente uma ruptura parcial, vez que o Dasein não só pode como deve ser compreendido a partir de diferentes pontos de vista. O dualismo ciclicidade/linearidade ao qual me referi no artigo anterior teve em vista contrapor as duas principais concepções de temporalidade que se digladiam na pós-modernidade: a primeira (cíclica) representando o Poder da Terra, e a segunda (linear) representando o Poder Marítimo. Contudo, pode ser que existam modelos temporais hibridiformes ou até mesmo dissonantes daqueles por mim elencados. Nossa predileção pelo primeiro em detrimento do segundo se deve a razões puramente estratégicas e ao fato de Dugin ter elegido a reversibilidade do tempo histórico como um dos principais eixos de articulação da Quarta Teoria Política.

Também concordamos com Hauschild de que tanto o tempo cíclico quanto o tempo linear podem conduzir o intérprete da realidade sócio-política circundante ao niilismo, “à meia noite da noite do mundo”. Entretanto, cumpre lembrar que, no contexto da Quarta Teoria Política, a ideia de reversibilidade do tempo histórico encontra-se intrinsecamente conectada à noção heideggeriana de Eregnis (Evento). Para Dugin, a Eregnis russa trará consigo uma nova aurora à humanidade, da mesma forma que em tempos pretéritos a aurora tzarista da “Rússia Branca” subjugou a “Rússia Roxa” (o império do Anticristo) sucessivas vezes. Tal encontra confirmação na Crônica Ura-Linda, segundo a qual a História Sagrada do continente euroasiático é marcada por recorrentes conflitos entre os frísios (filhos de Freya, a proto-raça hiperbórea do Norte) e os fineses (filhos de Finda, raça intermediária entre os frísios e os lídios, filhos de Lida, mãe dos escravos). É sumamente importante, antes de adentrarmos a questão da Eregnis russa, mencionar rapidamente o caráter cíclico da História Sagrada de acordo com a Crônica Ura-Linda. Nas palavras de Alexandr Dugin:

“A Crônica Ura-Linda aplica sua metodologia sacro-racial não só à geografia, mas também à lógica da História. Nela, a História Sagrada tem um caráter cíclico. Para trazer o Espírito promove sua decadência, e a decadência, um novo Renascimento. Dentro da perspectiva da Crônica os “filhos de Freya” se convertem no sujeito principal da História Sagrada: suas vitórias equivalem à decolagem do Espírito Universal; suas derrotas, à sua queda. Toda a História descrita em Ura-Linda,a partir do afundamento de Atlântida, da Terra Velha, é a história da decadência dos frísios, é dizer, da trajetória descendente do ciclo. No princípio desaparece Atlântida, sua “Pátria grande”. Mais tarde, se submergem no Mar do Norte suas novas terras, situadas antigamente na zona do Banco Dogger. Obrigados posteriormente a emigrar à Eurásia, se mesclam com as tribos finesas ou sofrem pressões de sua parte. Finalmente, os pérfidos magos declaram guerra aos frísios e com seus ataques interrompem a sagrada tradição das Virgens Brancas. A última delas morre nas mãos dos magos. A sagrada chama nórdica se apaga. –tradução livre do espanhol – (DUGIN, Alexandr. Rusia: El Misterio de Eurasia, pgs 85 e 86)   

Essa perspectiva mítico-escatológica da geografia sacral viria, mais tarde, a influenciar a apropriação duginiana do conceito de Eregnis, com vistas a resistir à inevitabilidade da influência niilista do ocidente sobre a trajetória do ciclo cósmico, nos seguintes termos:

“Heidegger usa um termo especial, “Eregnis” – o “Evento”, para descrever esse retorno súbito do Ser. Ele ocorre exatamente à meia noite da noite do mundo – no momento mais escuro da história. O próprio Heidegger constantemente vacilava quanto a esse ponto já ter sido alcançado ou – “ainda não”. O eterno “ainda não”...

A filosofia de Heidegger pode provar ser aquele eixo central conectando tudo ao seu redor – das segunda e terceira teorias políticas reinterpretadas ao retorno da teologia e da mitologia. Assim, no coração da Quarta Teoria Política, em seu centro magnético, está a trajetória da Eregnis (o “Evento) iminente, que incorporara o retorno triunfante do Ser no exato momento em que a humanidade o esquece de uma vez por todas ao ponto de que seus últimos traços desaparecem” (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, pgs. 30 e 31)

E arremata, mais adiante:

“Porém, é possível afirmar desde já que a versão russa da Quarta Teoria Política, baseada na rejeição do status quo em suas dimensões práticas e teóricas, focará na “Eregnis russa”. Esse será aquele “Evento”, único e extraordinário, para o qual muitas gerações de russos viveram e esperaram, do nascimento de nossa nação à chegada futura do Fim dos Dias” (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, pgs. 32 e 33)       

Portanto, a Quarta Teoria Política, como negação do status quo vigente, estaria incumbida de preparar o terreno para a chegada da Eregnis russa, para o triunfo da “Rússia Branca” (constante na profecia da Virgem) sobre a “Rússia Roxa” (estandarte do império do Anticristo). Isso só pode ser feito desde uma perspectiva de tempo cíclico, reversível e não-linear, em coordenação com a função de institucionalização política da historicidade cronológica presidida pelo Dasein. É preciso, na esteira deste raciocínio, obtermos uma visão de conjunto, o que implica, em certo senso, abandonarmos especulações improfícuas em prol de uma abordagem teórico-prática vocacionada para escopos civilizacionais, firmes na tese de que “a pós-modernidade, que Heidegger não viveu pra ver, é, em todos os sentidos, o esquecimento último do Ser, é aquela “meia-noite”, quando o Nada (niilismo) começa a escorrer de todas as rachaduras. Porém, essa filosofia não era desesperançosamente pessimista. Ele [Heidegger] acreditava que o próprio Nada era o outro lado do puro Ser, o qual, de modo tão paradoxal! – lembra a humanidade de sua existência. Se nós decifrarmos corretamente a lógica por trás do desdobramento do Ser, então a humanidade pensante poderá salvar a si mesma com máxima rapidez no momento de maior risco. “Onde está o perigo, lá também cresce a oportunidade de salvação”, Heidegger cita a poesia de Friedrich Hölderlin”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 30)  

Voltemos nossa análise agora para a questão da historicidade da pré-sença, com o intuito de desfazer o equívoco de que a ontologia heideggeriana é completamente alheia ao tempo histórico. O fato de Heidegger nos oferecer a intramundanidade do Ser como origem da temporalidade historiográfica não significa que devemos ignorar o aspecto ôntico do tempo, mas tão-somente que o enraizamento de tal aspecto encontra-se ancorado na temporalidade. É o que se colhe da seguinte preleção: “Se a própria historicidade deve-se esclarecer a partir da temporalidade e, originariamente, a partir da temporalidade própria, então na essência desta tarefa reside o fato de que ela só pode ser desenvolvida através de uma construção fenomenológica. A constituição ontológico-existencial da historicidade deve ser conquistada por oposição à interpretação vulgar que encobre a história da pré-sença”. (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. II, p. 180)    

Logo, a historiografia, considerada em termos rigorosamente científicos, seria a confirmação das potencialidades latentes da origem ontológica da história. Mas isso não constitui um entrave no sentido de que deveríamos abandonar tudo o que é ôntico em virtude de essencialidades puramente ontológicas do Ser intramundano. Há um aspecto do tempo que sempre pode ser calendarizado ou cronologizado. Esta seria a forma imediata pela qual nós apreendemos o tempo como fenômeno através da pré-sença. “Todavia, a pre-sença deve ser chamada de “temporal” também no sentido de ser e estar “no tempo”. Mesmo sem uma construção historiográfica dos fatos, a pre-sença, de fato, precisa e se vale de calendário e de relógio. Ela faz a experiência do que “com ela” acontece, como acontecendo “no tempo”.  (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. II, p. 181)   

Destarte, a assimilação do Dasein pela Quarta Teoria Política não nos parece infundada, principalmente se levarmos em conta que ela ocorre no contexto de uma epistemologia metapolítica e supra-ideológica.  Em outros termos: Alexandr Dugin não politiza o Dasein em sua Quarta Teoria Política, mas,antes, é o Dasein que, como agente histórico da Quarta Teoria Política (re)temporaliza a política, fracionando  o processo de institucionalização do tempo histórico em vários eixos de subjetividade transcendente. É assim que poderíamos aludir não a um, mas a uma vasta gama de transcendens existenciários fluindo ôntico-ontologicamente através do mosaico hipercomplexo de uma plataforma geopolítica pretensamente multipolar. Nesse sentido, Dugin obtempera: “Nós podemos estabelecer sobre esta base o prognóstico e os projetos. Segundo Heidegger, o estar lançado (Geworfenheit) do sujeito (Dasein) o força a se projetar. Etimologicamente está claro: o sujeito é formado por sub-jectum (sub-jacere), o projeto – por pro-jectum (pro-jacere). Em ambos os casos nós temos o verbo “lançar”. A análise do futuro está enraizada nisso: apreendendo o futuro, nós o estamos fazendo. É um labor sobre a história e sobre a consciência do tempo enquanto tal”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 84)

Mas isso levanta um problema, que pode ser assim enunciado: como sociedades detentoras de projetos de vida mutuamente contraditórios poderiam se respeitar nesse plano de consistência multipolarizado? Ou, ainda: como assegurar um futuro igualmente próspero para todas as concepções de tempo histórico que disputam um lugar ao sol? A resposta para essas indagações reside naquilo que Dugin chamou de Sujeito Radical, a assunção heterodoxa de uma instância ainda mais profundamente arraigada na estrutura ontológica da realidade do que a subjetividade transcendente de Husserl. Em célebre preleção, Dugin aduz que “nas profundezas da subjetividade transcendental, há outra camada a qual Husserl não cavou. Husserl estava convicto de que aquela descoberta feita por ele era a última. Mas acontece que não era. Tinha que haver outra dimensão ao redor, a dimensão mais escondida. Nós podemos designá-la como Sujeito Radical. Se a subjetividade transcendental de Husserl constitui a realidade através da experiência da manifestação autorreferencial, o Sujeito Radical deve ser encontrado não no caminho para fora, mas sim no caminho para dentro. Ele se mostra apenas no momento da máxima catástrofe histórica, na drástica experiência do curto-circuito que dura por um momento mais longo e mais poderoso do que é possível suportar. A mesma experiência que faz a subjetividade transcendental se manifestar e implementar seu conteúdo criando assim o tempo, e com sua intrínseca música é considerada pelo Sujeito Radical como um convite para se mostrar de maneira diferente – no outro lado do tempo. Para ele, o tempo – em todas as formas e configurações – não é nada mais do que uma armadilha, o truque, o artificial, atrasando a real decisão. Para o Sujeito Radical não somente a virtualidade e a rede, mas a realidade já é a prisão, o campo de concentração, o sofrimento, a tortura. O levo cochilo da história é algo contrário à condição na qual ele poderia ser, completar a si mesmo, se tornar. Toda criação da subjetividade, sendo a formação secundária da temporalidade, é o obstáculo para sua vontade pura. Se nós aceitarmos a hipótese do Sujeito Radical, nós adquirimos imediatamente a instância que nos explica quem tomou a decisão da globalização, do suicídio da humanidade e do fim da história, quem concebeu esse plano e o trouxe para a realidade. Pode ser, portanto, o drástico gesto do Sujeito Radical interessado na libertação (impossível) não temporal.  O Sujeito Radical é incompatível com todos os tipos de tempo. Ele, veementemente, demanda o anti-tempo, baseado no fogo exaltado da eternidade transfigurada na luz radical. Quando todo mundo se foi, restarão somente aqueles que não puderam ir. Talvez esta seja a razão da grande provação”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, pgs. 90 e 91)

E aqui alcançamos o ponto nevrálgico de toda a discussão: pressupor a existência de um Sujeito Radical por trás de uma multiplicidade de subjetividades transcendentes fugiria aos domínios da filosofia enquanto ciência profana e nos reconduziria a elucubrações de natureza esotérica, onde qualquer teoria política, por mais complexa que seja, não passaria de um eco ou um sussurro na prolífera vastidão dos mistérios humanamente imperscrutáveis (ôntica ou ontologicamente). Em última instância, a questão é a mesma de buscar apreender o Uno por trás do múltiplo, a eternidade necessária por trás da variabilidade acidental. O Sujeito Radical, como o anti-tempo ou como a outra face do tempo politicamente institucionalizado pelo Dasein traduz a mesma fatalidade da pulsão de morte que tenta se libertar de si mesma através da modelização de novos paradigmas caósmicos ou Universos de referência guattarianos. Seria demasiadamente infrutífero unir esforços para tentar definir os contornos semânticos do Sujeito Radical. A única coisa que podemos fazer é admitir que existe algo no Dasein que pode ser instrumentalizado historicamente para fins de redefinição da concepção de temporalidade predominante, qual seja: a de processo monotônico, linear ou unidirecional. Ao adotar o Dasein como agente histórico, a Quarta Teoria Política aniquila seu invólucro, a redoma de vidro na qual ele encontrava preso e o traz para a esfera do possível, das realizações concretas. Ou podemos, ainda, adotar a perspectiva tradicionalista de Julius Evola, de acordo com a qual inexiste fatalidade, mas tão somente uma conjugação de forças humanas e naturais que conflui, inelutavelmente, para a dimensão da pura sacralidade. Nas palavras de Evola: “É conveniente notar que tudo isto não corresponde de forma alguma a um <<fatalismo>>, mas sim que exprime antes a intenção permanente do homem tradicional de prolongar e de integrar a sua própria força com uma força não humana descobrindo momentos em que dois ritmos – o humano e o das potências naturais – por uma lei de sintonia, de acção concordante e de correspondência entre o físico e o metafísico se podem tornar uma única e mesma coisa, a ponto de arrastarem para a acção poderes invisíveis. Também assim se volta, portanto a confirmar a concepção qualitativa do tempo vivo, em que cada hora e cada momento tem a sua fisionomia e a sua <<virtude>> e em que – no plano mais elevado, o simbólico-sacro – existem leis cíclicas que desenvolvem identicamente uma <<cadeia ininterrupta de eternidades>>”. (EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno, pgs. 204 e 205)          

Conclui-se, portanto, que o Dasein, compreendido à luz da Quarta Teoria Política, assimila o tempo como categoria política, o que não só o permite mobilizar uma quantidade astronômica de pré-conceitos como também a conferir substância à multiplicidade de concepções de temporalidade que retiram seu fundamento de legitimidade da institucionalização político-civilizacional do tempo histórico. Nesse diapasão, a intramundanidade do ser deve ser captada em acepção ôntico-ontológica, em flagrante imbricação com o sentido de coerência da Eregnis russa e com a multipolaridade do espectro civilizatório, esta última qualificadora do Quarto Nomos da Terra. Não queremos dizer, com isto, que a leitura de Hauschild acerca da ontologia heideggeriana está errada, mas simplesmente que o Dasein, nas latitudes metodológicas da Quarta Teoria Política, tem que poder abandonar o invólucro do espaço puro para adentrar o esquema fenomenológico. E aqui a sabedoria esotérica é de extrema importância para compreendemos o fenômeno temporal, não como um recinto fechado que atua eventicamente sobre si mesmo, mas como uma estrutura aberta que dinamiza a comunicação da humanidade com a natureza rumo à instância pura da eternidade imóvel. O tempo cíclico deve ser adotado para fins puramente estratégicos, de modo a provocar uma ruptura em relação à hegemonia da unidirecionalidade governada pelas Forças do Mar na pós-modernidade. É essa visão de conjunto que nos permitirá triunfar mais uma vez sobre a chaga do niilismo, sem precisarmos chegar no ponto crítico de abolirmos o tempo através do Sujeito Radical, essa estrutura recôndita que antecede a subjetividade transcendente.

NOTAS:



(versão espanhola)

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REFERÊNCIAS:


DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, Editora Austral: Curitiba, 2012.

DUGIN, Alexandr. Rusia: El mistério de Eurasia, Grupo Libro 88, Colección Paraísos Perdidos: Madrid, 1992.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, vol. I, Editora Vozes: Rio de Janeiro, 2005.

HEIDEGGER, Martin Ser e Tempo, vol II, Editora Vozes: Rio de Janeiro, 2005.


EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno, Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1989. 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A Ciclicidade do Tempo Histórico sob o Prisma do Neoeurasianismo da Quarta Teoria Política

Por: Gustavo Aguiar


“O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel” - Platão

Desde que o homem passou a se dedicar integralmente à descoberta de novos avanços no campo das ciências profanas e a ideia de progresso foi completamente absorvida pela velocidade com que se dá forma aos aspectos de uma realidade cada vez mais saturada, a história parece transcorrer em uma cronologia linear, retilínea ou unidirecional, como se ela tivesse brotado magicamente de um ponto determinado do cosmos e estivesse caminhando em direção a algo que ninguém sabe dizer bem o que é. A única certeza que podemos extrair deste panorama tem a ver com a intensificação do grau de ansiedade, que vem atingindo patamares nunca antes verificados. Tudo à nossa volta (do sistema métrico à marcação das horas) parece tentar nos convencer de que somos mais evoluídos do que os nossos antepassados, não por obra de feitos ou proezas consideráveis, mas pelo simples fato de nos situarmos em uma escala cronológica menos primitiva. Todavia, existem razões suficientes para acreditarmos que estamos involuindo.

Um dos conceitos trabalhados pelo neoeurasianismo da Quarta Teoria Política do professor Alexandr Dugin é o da ciclicidade do tempo histórico, algo que já havia sido esboçado por vertentes esotéricas e filosóficas (vide o perenialismo de René Guénon e a ontologia de Martin Heidegger), mas não sob uma perspectiva metapolítica e geoestratégica. O mérito de Dugin foi justamente o de ter reunido os fragmentos mais importantes das sobreditas correntes em um sistema metodologicamente inovador, voltado para a desmistificação do logos liberal (em seara ideológica) e do programa hegemônico do globalismo unipolar (em âmbito geopolítico), ambos capitaneados pelos EUA.

Se, por um lado, Dugin procura conjurar os arquétipos adormecidos da Santa Rússia visando restituir ao Império Euroasiático seu papel na história das civilizações com lastro na geografia sagrada – o que se patenteia por uma leitura de Rússia: o mistério da Eurásia - , por outro, essa tarefa vem acompanhada de um certo esforço no sentido de alinhar tal concepção à instituição de Grandes Espaços – Geopolítica do Mundo Multipolar -. Entretanto, é na sua aclamada A Quarta Teoria Política que se encontram consignados estudos que versam sobre a ciclicidade do tempo histórico, nos limites dos quais procuraremos nos deter ao máximo, sem, contudo, olvidar lições valiosas de outras obras, que muito nos auxiliarão no desvelamento de alguns conceitos-chave.

Para desconstruir a tese do desenvolvimento linear propugnada pelo darwinismo social de Hebert Spencer, Alexandr Dugin se vale da crítica acerca dos processos monotônicos, realizada pelo antropólogo norte-americano Gregory Bateson. Nas palavras de Dugin, “o processo monotônico é a ideia de crescimento constante, acumulação constante, desenvolvimento, progresso estável e de elevação de um indicador particular.Na matemática, isso é associado com a noção do valor monotônico, i.e., o valor que sempre aumenta, daí as funções monotônicas (...) Estudando o processo monotônico em três níveis – ao nível da biologia (vida), ao nível da mecânica (motores a vapor, motores de combustão interna) e ao nível do fenômeno social, Bateson concluiu que quando esse processo ocorre na natureza, ele imediatamente destrói a espécie; se estivermos falando de um aparato artificial – ele quebra (explode, entra em colapso); se falamos de uma sociedade – a sociedade deteriora, degenera e desaparece. O processo monotônico (na biologia) é incompatível com a vida – é um fenômeno antibiológico”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 65)
   
Ao contrário do que apregoam os axiomas modernos de ordem cientificista, a acumulação de crescimento linear, orientada pela lógica da irreversibilidade do tempo histórico, parece nutrir aversão a tudo que não carrega o selo da historiografia convencional, em prejuízo da comunicabilidade entre progresso e tradição. As próprias premissas de que parte o raciocínio historiográfico são portadoras do gérmen do reducionismo histórico, posto condicionadas a enxergar na antiguidade clássica a origem da civilização ocidental, o que, segundo Guénon, não constitui um erro propriamente dito, mas um enquadramento da noção de progresso amplamente difundida nas sociedades de matriz greco-latina, que não só tendem a ignorar a espiritualidade pré-histórica, como também a extirpá-la do pensamento ocidental. Nos dizeres de René Guénon:“Essas pesquisas de alcance exclusivamente prático, no sentido mais estreito da palavra, deviam ser efetuadas, mas só o podiam ser no extremo oposto da espiritualidade primordial, por homens mergulhados na matéria a ponto de nada mais poderem conceber para além dela, tornando-se tanto mais escravos dessa matéria quanto mais se servissem dela, o que os conduz a uma agitação sem regra e sem objetivo, à dispersão na multiplicidade pura, até a dissolução final”. (GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno, p. 20) 

Logo, os estudos empreendidos por Bateson e Guénon, apesar de essencialmente heterogêneos, convergem para a obtenção de um mesmo resultado: o de que o colapso iminente das civilizações modernas será precedido pelo acúmulo progressivo de complexidade dos sistemas sociais que formam sua estrutura topográfica, e por “complexidade” não queremos designar um estágio de superioridade sócio-cultural, mas, diversamente, a trilha que desemboca nos vales da morte e da destruição.  Portanto, a ciclicidade do tempo histórico surge, no âmbito da Quarta Teoria Política, como uma rota de fuga de uma realidade que fabrica os instrumentos da sua própria aniquilação.

Para Alexandr Dugin, “o tempo é um fenômeno social; sua estrutura não depende dos caracteres do objeto, mas da dominação de paradigmas sociais, porque o objeto é designado pela própria sociedade. Na sociedade moderna, o tempo é visto como irreversível, progressivo e unidirecional. Mas isso não é necessariamente verdade dentro de sociedades que não aceitam a Modernidade. Em algumas sociedades sem uma concepção estritamente moderna do tempo, concepções cíclicas e até mesmo regressivas do tempo existem. Por isso, a história política é considerada na topografia de várias concepções do tempo para a Quarta Teoria Política. Há tantas concepções de tempo, quanto há de sociedades”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 74) 
    
Tal mundividência se encaixa perfeitamente no posicionamento sustentado por Dugin em Geopolítica do Mundo Multipolar sobre a urgência de adotarmos a cosmovisão geopolítica do pluriversum planetário como eixo de superação da epistemologia universalista, que, a seu turno, vem servindo para justificar os mais variados tipos de neocolonialismo perpetrados pelas talassocracias plutocráticas, encarnações redivivas das Forças do Mar na pós-modernidade. O próprio conflito entre Mar e Terra, atlantocracias e telurocracias, parece corroborar a perspectiva da ciclicidade do tempo histórico, haja vista que o encerramento de todos os ciclos cósmicos se dá pelo triunfo de um dos pólos sobre o outro. O triunfo do Mar na modernidade começa com o iluminismo e se estende até os dias atuais, com o agigantamento do imperialismo norte-americano e a intervenção da OTAN em questões locais (v.g. questão ucraniana). Nesse diapasão, Dugin aduz que “a Teoria do Multipolarismo é baseada na filosofia da pluralidade. Esta ideia foi magistralmente exposta pelo filósofo e geopolítico francês, Alain de Benoist, no manifesto “2000” do movimento GRECE, o qual ele lidera. Alain de Benoist solicita que o mundo seja considerado como um “pluriversum”, distintamente de “universum”. Em latim, “universum” significa “redução ao único”. O neologismo “pluriversum” enfatiza que o objetivo não é a redução ao único, não é simplificar o sistema, mas preservar a diversidade e a pluralidade”. (DUGIN, Alexandr. Geopolítica do Mundo Multipolar, p. 42)

Destarte, a Weltanschauung neoeurasiana conjuga a proposta da história cíclica, reversível e não-linear com a tese pluriversalista, sustentando que cada contexto etno-cultural encerra um universo dentro de si mesmo, algo que se projeta ao infinito, sem interferir nas demais estruturas sócio-políticas do pluriversum planetário (uma plataforma inerentemente multipolar), desafiando os postulados nucleares da teoria etnocêntrica, preconizadora de uma “unidade da existência humana”. Podemos constatar, no tocante a esse ponto, que cada povo detém um ritmo e uma concepção de desenvolvimento próprios, e que o tempo possui conotações diferentes em diferentes esferas sócio-demográficas. Seria, portanto, um impropério considerar sociedades primitivas – não-civilizadas de acordo com o padrão euro-ocidental atlantista -  como inferiores a hiperpotências transnacionais. Daí a conclusão de que as potências da Terra devem permanecer unidas para reivindicarem a soberania de seus respectivos espaços vitais no tabuleiro de uma geopolítica ontologicamente ressemantizada (Geopolítica-2, em terminologia duginiana).

Outro vetor axiológico sumamente importante para uma compreensão adequada da dimensão semântica da multipolaridade como principal diretiz operabilística do neoeurasianismo da Quarta Teoria Política é o conceito de “instância contínua” proposto pela fenomenologia husserliana (que incorpora a ideia de reverberação do passado no presente para a construção de um futuro promissor). Nas palavras sempre reveladoras de Alexandr Dugin:

“Husserl propôs estudar o tempo com o exemplo da música. A consciência de ouvir uma peça musical não é baseada na estrita identificação das notas soando em um momento concreto e discreto. Ouvir música é algo diferente de ouvir uma nota que soa agora, no presente. A consciência da música é acessada relembrando as notas passadas também, que estão se dissolvendo pouco a pouco no nada, mas sua ressonância, o eco, continua na consciência e dá à fase musical o senso estético. Husserl chama isso de “a instância contínua”. O passado está presente no presente. O presente assim torna-se contínuo e inclui o passado como presença evanescente. Essa é a chave metodológica para o entendimento da história. História é a consciência da presença do passado no presente. O evento de esvaecimento continua a soar na lembrança deles (...) Por isso, o futuro deveria ser colocado nesse contexto. Ele é o contínuo no presente. Não o momento do “novum”, mas o processo de esvaecimento do presente, que é agora. O futuro é a causa do presente, sua ressonância. Nós vivemos o futuro agora, já agora, quando nós tocamos as notas da melodia da vida”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, pgs. 78 e 79)   

Somente a partir do momento em que entendemos o tempo como um continuum (termo que denota ausência de segmentaridade, ininterrupção e um potencial latente de intercambialidade entre sistemas cronologicamente determinados) é que poderemos captar a essência do presente histórico como prolongamento ou desdobramento do passado, que, por sua vez, nos fornece um leque de possibilidades criativas que se projetam futuramente. A metáfora musical nos serve de bússola para a compreensão do fenômeno histórico como produto do arranjo de notas e melodias em uma grande orquestra sinfônica, de modo que a indeterminação do futuro é suprida pela ressonância do passado no presente, mais ou menos nos termos em que Platão descreve sua anamnese no Mênon. O tempo torna-se, então, reversível, porque transcende o objeto enquanto consciência pura ou supra-fenomenológica. Conforme célebre escólio de Dugin:

“Husserl está cavando muito mais fundo na fenomenologia do tempo. Ele descobre a nova instância da consciência subjacente quando a história musical do tempo é percebida. De acordo com Husserl, debaixo desse nível há outro, o último, que é responsável pela nossa percepção do que está agora com a força da evidência e o gosto da realidade muito mais intenso do que no caso da recordação do passado sempre agonizante. Essa instância é a própria consciência, a consciência enquanto tal que precede a intencionalidade e o tópico dualista de apreensão, sendo necessariamente dividido em duas partes – o percebido e o percebedor. No presente, a consciência percebe a si mesma e nada mais. Essa é a experiência máxima da última fonte da realidade. Segundo Husserl a base de tudo é a subjetividade transcendental; donde concebe a si mesma, é um tipo de “curto-circuito”. Essa é uma experiência autorreferencial. Nisso há a percepção do puro Ser como a presença da subjetividade da consciência”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 79)

E conclui, mais adiante:

“O que é mais importante nessa interpretação da morfologia do tempo? A ideia de que o tempo precede o objeto e ele enraíza o tempo, nós devemos buscar profundamente no interior da consciência, não nas coisas exteriores construídas por procedimentos subjetivos de autoexperiência traumática. O mundo ao nosso redor se torna aquilo que é pela ação fundamental do presenciamento realizado pela mente. Se uma mente adormece a realidade carece do gosto da existência presente. Ela está completamente imersa no contínuo e ininterrupto sonho. O mundo é criado pelo tempo, e o tempo por sua vez é a manifestação da subjetividade auto-encontradora”. (DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, p. 80)      

Este é precisamente o ponto em que todas essas elucubrações filosóficas acerca do tempo se encontram com o projeto neueurasiano da Quarta Teoria Política: se o tempo em instância extra-fenomenológica precede o objeto, é imperativo reconhecer a existência de uma pluralidade de subjetividades imanentes em cada tradição cultural. Portanto, toda e qualquer tentativa de “absolutizar” ou universalibilizar o fenômeno temporal, de impô-lo como programa único de uma única tradição cultural em detrimento das demais tradições sobeja um tanto desarrazoado. Não obstante, é exatamente isso que as potências hegemônicas representantes do leviatânico poder marítimo vêm fazendo: justapor sua concepção linear, unidirecional e irreversível de tempo histórico à cosmovisão de povos de acordo com os quais a temporalidade é completamente alheia à percepção ocidental.  A destruição da hegemonia globalista das Forças do Mar pelas potências da Terra implicará a abertura da mentalidade contemporânea relativamente ao caráter multifacetado do tempo histórico.

Todo o aqui analisado também ecoa na pauta do debate encetado por Alexandr Dugin e o pseudo-filósofo Olavo de Carvalho, onde o professor Dugin, com sua habitual elegância e desenvoltura, teve a oportunidade de explanar seu posicionamento concernente à influência global do imperialismo norte-americano. Tal debate encontra-se registrado nas páginas da obra Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial: um debate entre Alexandre Dugin e Olavo de Carvalho, de onde se extrai prodigioso excerto do mestre eurasiano: “[Atualmente] considera-se a história como sendo um processo unívoco (monótono) de progresso tecnológico e social e o caminho da crescente libertação dos indivíduos e de todas as identidades coletivas. A tradição e o conservadorismo são considerados obstáculos à liberdade e deveriam ser rejeitados, e os EUA estão na vanguarda desse progresso histórico e têm o direito e a obrigação (missão!) de fazer a história seguir adiante, pois a existência histórica dos EUA coincide com o curso da história humana, de maneira que “americano” significa “universal”. Portanto, as outras culturas terão um futuro americano ou nenhum futuro”. (DUGIN, Aleksandr; CARVALHO, Olavo de, Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial: em debate entre Alexandre Dugin e Olavo de Carvalho, p. 27)

Ademais, podemos nos reportar à análise de Julius Evola sobre os aspectos místicos da ciclicidade do tempo histórico nas sociedades tradicionais, com o escopo de abstrair suas particularidades. Em ensaio intitulado O Espaço-Tempo, Evola nega peremptoriamente a plausibilidade da cronologia linear de índole quantitativa, contrapondo-a às experiências temporais concretas das referidas sociedades, conforme fica evidente na seguinte passagem:

“A experiência tradicional do tempo era completamente diferente. Nela o tempo não é uma quantidade, mas sim uma qualidade; não é uma série, mas sim um ritmo. Não transcorre uniforme e indefinidamente, mas sim fractura-se em ciclos, em períodos, dos quais cada um dos momentos tem um significado, e por isso um valor específico em relação a todos os outros, uma individualidade bem viva e uma funcionalidade. Estes ciclos ou períodos – o <<grande ano>> caldeu e helénico, o saeculum etrusco-latino, o éon irânico, os <<sóis>> astecas, os kalpa hindus, e assim por diante – representam cada um deles um desenvolvimento completo, formando unidades fechadas e perfeitas, portanto idênticas umas às outras, e ao repetirem-se não se alteram nem multiplicam, mas sim sucedem-se – conforme a feliz expressão de alguém - <<como uma série de eternidade>>. Tratando de um conjunto não quantitativo mas sim orgânico, a duração cronológica do saeculum podia também ser flexível. Durações quantitativamente desiguais podiam ser consideradas como iguais, desde que cada uma delas contivesse e reproduzisse todos os momentos de um ciclo. Por isso, assistimos à repetição tradicional de números fixos – por exemplo o sete, o nove, o doze, o mil – que não exprimem quantidades, mas sim estruturas típicas de ritmo, permitindo ordenar durações materialmente diferentes, mas simbolicamente equivalentes” (EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 200)  

Interessante observar como a percepção do fenômeno temporal enquanto ritmo nos permite identificar o esoterismo de Evola com a fenomenologia de Husserl. Não é à toa que Dugin utilizou como referenciais teoréticas inúmeras premissas desenvolvidas pelos cognominados tradicionalistas stricto sensu (Julius Evola e René Guénon) para a construção de sua Quarta Teoria Política. Na medida em que vamos nos aprofundando nos estudos sobre o fenômeno temporal, percebemos que parece haver qualquer coisa de substancialmente esotérica em sua constituição, um traço divino do qual a forma externa (exotérica) se nos apresenta como fator meramente contingente ou acidental. Com efeito, a partir de um certo ponto da nossa investigação, a própria filosofia torna-se obsoleta. Esse é o momento em que devemos abandonar o rigor epistemológico dos axiomas científicos e nos curvar diante da sabedoria esotérica, o que implica aceitar certos mistérios como fonte de verdades necessárisa, não obstante insatisfatórias sob a ótica empírica.    

De todo o acima exposto, conclui-se que a temporalidade, sob o prisma do neueurasianismo da Quarta Teoria Política, dedica-se inteiramente à superação dos prognósticos unidirecionais típicos de sociedades modernas, com espeque na proposição de uma geopolítica pretensamente multipolar em que o fenômeno cronológico possa ser fracionado em diferentes percepções da realidade e percebido através de múltiplas subjetividades transcendentes. Como o tempo assume roupagens heterogêneas em contextos sócio-políticos nem sempre coincidentes, urge abandonarmos a vetusta e mofada ideologia do progresso em prol do questionamento das estruturas de poder globalmente impostas. Não podemos nos deixar seduzir pelos slogans universalizantes das Forças do Mar, sob pena de colocarmos em risco nossa própria sobrevivência. A Quarta Teoria Política constitui um verdadeiro grito de guerra nas trincheiras de uma pós-modernidade que nos conduz, a passos largos, em direção ao colapso iminente, e é da matéria de seus postulados que deve ser feito nosso arsenal.       


REFERÊNCIAS:


DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política, Editora Austral: Curitiba, 2012.

DUGIN, Alexandr. Geopolítica do Mundo Multipolar, Editora Austral: Curitiba, 2012.

DUGIN, Alexandr; CARVALHO, Olavo de. Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial: um debate entre Alexandre Dugin e Olavo de Carvalho, Vide Editorial: São Paulo, 2012.

GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno, Clube do Tarô: São Paulo, 2007.

EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno, Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1989.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Da Perspectiva de Reconciliação entre Arcaísmo e Tecnociência a partir do Arqueofuturismo de Guillaume Faye

Por: Gustavo Aguiar




“O sol retornará, e ele será de pedra” – Maurice Rollet

Na primeira metade do século XX, quando da publicação de sua obra-prima Der Untergang des Abendlandes (A Decadência do Ocidente), o filósofo e historiador alemão Oswald Spengler nos brinda com o método revolucionariamente fulgurante da fisiognomonia, que viria a possibilitar, mediante criteriosa análise de diversas tradições culturais, a apreensão intuitiva da morfologia geral da História Universal, calcada em um resgate da imbricação entre história e natureza. Para Spengler, o declínio do ocidente é atestado pelo avançado grau de descolamento das metrópoles contemporâneas em relação à dimensão protofenomênica da Kultur, que, desde tempos imemoriais, vem armazenando os principais caracteres cosmológicos para a realização de uma síntese unitária entre as esferas micro e macrocósmica.

Diversamente das peculiaridades espacio-temporais que discriminam o ritmo de desenvolvimento de cada complexo metropolitano, a Zivilization, compreendida como o agregado cosmopolita de metrópoles sujeitas a um constante processo de industrialização resultante do advento das máquinas a vapor, triunfou sobre a cultura primitiva do campesinato, triunfo “pelo qual [a cidade] se liberta do solo, e devido ao qual perece. Desarraigada, desprendida do elemento cósmico, entregue, irrevogavelmente, à pedra e ao espírito, cria a cidade uma linguagem formal a reproduzir todos os traços de sua índole; não os traços de um devir, mas os de algo que deveio, que está concluído, que pode ser modificado, porém não desenvolvido”. (SPENGLER, Oswald. A Decadência do Ocidente, p. 285)

Se o que caracteriza a civilização em Spengler é a materialização de uma tensão permanente entre a mentalidade citadina e o campo (e partindo do pressuposto insofismável de que este último se encontra muito mais estreitamente conectado com os componentes arquetípicos do imaginário cultural do que aquela), torna-se imperioso constatar que uma das forças motrizes da decadência da civilização ocidental é a perda do contato com a tradição apolínea (antiga) em virtude da entronização do romantismo faustiano, dionisíaco ou pós-cesariano (ocidental), qualificado pela separação do “espaço puro” e do “presente sensível”, separação que impossibilitaria a representação do deus cristão em esculturas e monumentos. “Atenas ou Apolo podem ser representados por uma estátua, mas há muito tempo que se sentiu claramente que a divindade da Reforma e da Contra-Reforma não podia “aparecer” senão na tormenta desencadeada por uma fuga de órgão ou no andar solene de uma cantada ou missa (SPENGLER, Oswald. A Decadência do Ocidente, p. 124)

A partir daí, o potencial criativo decorrente do contato do homem com a natureza cede espaço à explosão de sucessivas metamorfoses civilizacionais que viriam a culminar na obnubilação dos símbolos primordiais da cultura ocidental.

Todo esse raciocínio, carregado de um nível de sofisticação superior ao que a erudição agnóstico-materialista está acostumada a processar, nos conduz, inelutavelmente, ao levantamento da seguinte problemática: seria possível equacionar tradição e tecnociência em um mesmo eixo epistemológico com vistas à persecução de um rechancelamento da cultura primitiva que seja compatível com o progresso em um cenário pós-apocalíptico de catástrofes previsíveis? O presente estudo buscará a resposta para esta questão na teoria arqueofuturista do francês Guillaume Faye, que, estribada na filosofia do martelo de Nietzsche, provoca questionamentos acerca da viabilização do resgate de um arcaísmo apolíneo organicamente articulado com seu contraponto hig-tech, ou, com o espírito romântico de matriz eurocêntrica, elegendo o método do pensamento radical como principal lineamento epistêmico.

Para construir a tese do arqueofuturismo, Faye parte de três diretrizes fundamentais, quais sejam:

a) o fenômeno da convergência de catástrofes no espírito igualitarista do século XXI, que prenuncia o colapso da civilização ocidental, algo muito próximo do diagnóstico de Spengler. “A civilização igualitária nascida da modernidade está vivendo seus últimos dias. Temos que pensar no depois da catástrofe, construir uma cosmovisão arqueofuturista para depois do caos” – tradução livre do espanhol - (FAYE, Guillaume, El Arqueofuturismo, p. 25)

b) ideia de “construtivismo vitalista”, “que é um quadro de pensamento global que alia a concepção orgânica e hipotética da vida com as visões de mundo complementares da vontade de poder nietzscheana, da ordem romana e da sabedoria realista helênica. Leitmotiv: ‘um pensamento voluntarista concreto, criador de ordem’” – tradução livre do espanhol – (FAYE, Guillaume, El Arqueofuturismo, p. 24)

c) construção de uma neofederação de Estados europeus (ou “Estados Unidos da Europa”) centralizada em uma estrutura tipicamente imperial, que pressupõe também “geopoliticamente, e em particular por razões ecológicas, pensar a Terra, cidade global, como zona de vida comum interdependente, não como uma zona dirigida por uma multidão de atores nacionais, e sim por “blocos imperiais”: Grande Europa, India, China, América do Norte, Iberoamérica, Mundo Muçulmano, África negra, Ásia das penínsulas. Será o futuro. – tradução livre do espanhol – (FAYE, Guillaume. El Arqueofuturismo, p. 25)

Destarte, a estratégia de acoplamento entre tradicionalismo e progresso tecnocientífico em um corpus unificado, que nega (e é bom que se frise à exaustão) toda e qualquer dogmática monolítica, está inarredavelmente vocacionada para instauração da ordem no caos. “’Convergência de catástrofes’, ‘arqueofuturismo’, ‘construtivismo vitalista’: sempre tentei criar novos conceitos, pois só mediante a inovação ideológica se pode evitar as doutrinas fixas e obsoletas em um mundo que está mudando rapidamente e onde os perigos se materializam; porque um pensamento equipado com armas permanentemente renovadas pode ganhar a ‘guerra dos conceitos’, impor a realidade e mobilizar os espíritos”. – tradução livre do espanhol – (FEYE, Guillaume.El Arqueofuturismo, p. 4)

Este é o eixo em torno do qual gravitam todas as propostas de consolidação do programa arqueofuturista, e um dos motivos que levaram Faye a romper com a Nouvelle Droite, tendo este último dedicado o primeiro capítulo de L’Archéofuturisme a uma exposição minuciosa das razões que desencadearam tal ruptura. Não nos aprofundaremos nesta polêmica, uma vez que fugiria às latitudes do nosso objeto de investigação. Entretanto, cumpre consignar, no tocante a esse ponto, apenas que, no juízo de Faye, a Nova Direita havia degenerado em uma seita hermeticamente fechada, impermeável à recepção de um discurso inovador, que se deixara impregnar pelo paganismo neofolk em detrimento da tradição autóctone, de raiz. A despeito do valor que tal assimilação possa ter sob o prisma do tradicionalismo escandinavo, não é algo que, na visão do autor, ofereceria grandes contributos para a elaboração de uma cosmovisão tipicamente orgânica e subversiva desde uma perspectiva europeia.

Na atual conjuntura sócio-político-estrutural, a vanguarda dissidente deve buscar atalhos que lhe permitam escapar incólume do labirinto pós-moderno, sem, todavia, ignorar as vantagens oferecidas pelo avanço da ecologia, da epidemiologia, da biotecnologia, das ciências aero-espaciais e outros ramos do conhecimento tecnocientífico. Mas isso exige certa dose de escrúpulo e um planejamento calcado na conciliação com a tradição imperial. Neste sentido, poder-se-ia qualificar o movimento arqueofuturista como um dos tentáculos da “revolução conservadora”, termo repugnado por Feyes. “A palavra “Revolução Conservadora”, utilizada com frequência para definir minha corrente de pensamento, é insuficiente. Este vocábulo “conservadora”, tem uma conotação desmobilizante, anti-dinâmica, um tanto rançosa, pois não temos que “conservar” o presente nem retornar a um passado recente que fracassou, e sim reapropropriarmos das raízes mais arcaicas, é dizer, das mais afeitas à ideia de vitória. Um exemplo entre outros, desta lógica inclusiva: pensar juntos a tecnociência e o arcaísmo. Reconciliar Evola com Marinetti; o Doutor Fausto com O Trabalhador” – tradução livre do espanhol – (FEYE, Guillaume, El Arqueofuturismo, p. 4)

Portanto, o arqueofuturismo seria antes uma espécie de coordenação sinérgica de duas forças ou tendências a princípio contraditórias (o progresso tecnocientífico e o regresso às raízes ancestrais) do que propriamente um movimento reacionário, caracterizado por uma oposição sistemática a tudo o que é moderno, atual, a todas as formas de desenvolvimento que ameaçam a integridade do holismo comunitário. Em artigo intitulado El Arqueofuturismo, Miguel Usseglio resume a essência do arqueofuturismo nos seguintes termos: “o Arqueofuturismo vem de um pensamento radical, que pode abalar a inércia e fundi-la no caos, algo como “filosofar com o martelo”. Guillaume Faye situa o Arqueofuturismo como a visão de uma ordem nova, surgida a partir do caos (uma convergência de catástrofes), ou seja, uma ideia para o mundo da era pós-catastrófica”.

O arqueofuturismo, como uma visão de mundo alternativa, pretende-se, conforme termo cunhado por Feyes, uma “aliança filosófica apolíneo-dionisíaca”. “É importante, nesta perspectiva, preparar-se para um possível enfretamento e rompimento com o angelicalismo moderno da concórdia universal. É fundamental repensar a guerra, não a forma moderna de guerras nacionais, mas, como na Antiguidade e na Idade Média, sob a forma de confrontos vitais de grandes grupos étnicos ou etno-religiosos. Seria interessante pensar novamente em futuras formas em gestação, tais macro-solidariedades que eram o Império Romano ou a Cristandade Europeia”. – tradução livre do espanhol -(FEYES, Guilleume. El Arqueofuturismo, p. 46)

A propósito da crise do Estado-Nação de natureza absolutista (que levou Faye a conjecturar acerca de um cenário internacional baseado na integração de blocos continentais e a pensar na reconfiguração da plataforma geopolítica onde esses blocos se digladiariam através de uma nova forma de guerra), podemos evocar o magistério de Julius Evola sobre a usurpação da soberania pelas democracias ocidentais e a emancipação do indivíduo quando do advento das democracias contemporâneas. Nas palavras de Evola: “à emancipação em relação ao Império dos Estados que se tornaram <<absolutistas>>, deveria suceder-se a emancipação em relação ao Estado dos indivíduos soberanos, livres e autónomos. Uma usurpação atraiu e preparou a outra, até que, nos Estados enquanto Estados soberanos nacionais tinham caído na estatização e na anarquia, a soberania usurpada do Estado se vergou perante a soberania popular, em cujo âmbito a autoridade e a lei só são legítimas na medida em que exprimem a vontade dos cidadãos considerados como indivíduos particulares e os únicos soberanos - é o Estado democratizado e <<liberal>>, aguardando a última fase, a puramente colectivista”. (EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 396)

Feye também não poupa essa lógica ultramodernista de emancipação do indivíduo em face do Estado a que alude Evola, se valendo do arcaísmo para confrontá-la: “Conforme a imemorável natureza humana, estes valores arcaicos rechaçam o erro da emancipação do indivíduo, crime cometido pela filosofia do Aufklärung, deixando apenas o indivíduo contra o Estado, monstro frio, e frente à barbárie social. Estes valores humano são apenas o sentido dos antigos gregos, porque miram no homem por aquilo que ele é, um zoon politicon (“animal social e orgânico inserido em uma cidade comunitária”), e não por aquilo que ele não é, um átomo assexuado e isolado possuidor de pseudo-“direitos” universais. Concretamente, esses valores anti-individualistas permitem a realização do si mesmo, da solidariedade ativa, a paz social, enquanto o individualismo pseudo-emancipador somente conduz à lei da selva”. – tradução livre do espanhol - (FEYE, Guillaume. El Arqueofuturismo, p. 42)

O surgimento das democracias liberais fornecem à hegemonia do politicamente correto uma nova base de sustentação, que, segundo Faye, não tem a ver com a ideia de “pensamento único” formulada por Alain de Benoist (a qual se reveste de um auto-vitimismo prejudicial à confrontação decisiva do atual estado de coisas), mas com a marginalização da ética dissidente. “O politicamente correto não se baseia em um sentimento ético sincero, nem sobre o medo físico de uma repressão, mas sobre um reflexo do esnobismo intelectual e da covardia social. Na verdade, o “politicamente correto” é politicamente elegante. Os jornalistas e os “pensadores” do atual sistema reproduzem de maneira “soft”[suave] e burguesa o mecanismo de apresentação da era stalinista: não se corre mais o risco de ser enviado a um campo de concentração, mas o de não ser admitido nos restaurantes e em outros lugares elegantes, de ser excluído dos círculos internos, de degustar as meninas bonitas, etc., se se emite alguma ideia à margem do sistema. É o que aconteceu com Jean Baudrillard. Ser politicamente correto não é uma questão de ideias, mas de integração social”. – tradução livre do espanhol - (FEYE, Guillaume, El Arqueofuturismo, p. 56)

O politicamente correto é, de longe, a maior força a serviço da manutenção do status quo, produzindo, em ritmo fervilhante, estereótipos grotescos para designar comportamentos não alinhadas à lógica de autoperpetuação das democracias modernas, um verdadeiro “soft-totalitarismo”, para usar uma expressão de Feye. É assim que, sob a ótica politicamente correta, propostas como o arqueofuturismo afiguram-se como uma síntese caricata de “fascismo” (porque afeito aos princípios que regiam o Sacro Império Romano), “xenofobia” (porque condena abertamente os grandes fluxos de massas de imigrantes em território europeu) e “nazismo” (porque subordina a tecnologia de ponta a uma ordem pretensamente simbólica e milenar). Contudo, não é despiciendo ressaltar que tais rótulos vêm servindo para deslegitimar a priori qualquer pensamento que não faça eco a mimetizações do discurso homogeneizado pelo mainstream ocidental. O próprio apelo a neologismos com o condão de fornecer significados a termos alógenos ao vocabulário popular sugere a deflagração de uma “revolução semântica”, a construção de pensamentos, senão total, pelo menos parcialmente desvinculada da forma mentis humanitária.

Outra sugestão importante do arqueofuturismo para a reestruturação da mentalidade dissidente é a ideia segundo a qual cada povo etnoculturalmente diferenciado é responsável pelo seu próprio destino, não havendo possibilidade de culpabilizar terceiros por eventuais infortúnios. Assim, se na época das colonizações um determinado povo foi sobrepujado por outro, isso não autoriza os invadidos a cobrarem “dividendos” dos invasores por aquilo que suas gerações pretéritas haviam realizado. Ora, é imperativo que o povo colonizado tenha a decência de reconhecer que seu insucesso, motivado por deficiências internas, constitui responsabilidade sua, e de mais ninguém. Insistir no contrário seria fomentar o discurso humanista, vitimista e igualitarizante, contribuindo para o engessamento do debate. Portanto, “o arqueofuturismo nos libertará desta praga que é o modernismo igualitário, em nada compatível com o século de ferro que está preparando: o espírito enfermo do humanitarismo que é um simulacro de ética e que transforma a “dignidade humana” em um dogma ridículo [...] Este espírito funciona como uma empresa de desarme moral, com suas proibições paralisantes, seus tabus culpabilizadores que impedem concretamente as opiniões públicas e os dirigentes europeus de fazer frente às ameaças”. (FEYE, Guillaume. El Arqueofuturismo, p. 53)

De todo o acima exposto, conclui-se que a proposta arqueofuturista constitui um importante arsenal dissidente contra a hegemonia do politicamente correto e seus consectários pseudo-humanistas que pululam na idade de ferro. A conciliação entre arcaísmo tradicional e futurismo tecnocientífico tem o desiderato de suprir o hiato que separa os universos apolíneo e dionisíaco, com vistas a um ideal de superação de uma dogmática pretensamente indefectível, imune à criação de novos conceitos, balizas e significados. Podemos interpretar o arqueofuturismo como a receita para o diagnóstico spengleriano acerca do declínio da civilização ocidental, e da urgência de se adotar medidas para impedir sua marcha ou, ao menos ,postergá-la. Um bom exemplo do que seria uma sociedade arqueofuturista pode ser contemplado nas páginas da série de quadrinhos O Incal, escrita por Alejandro Jodorowsky e ilustrada pelo magnífico Jean Giraud (vulgo Moebius).


REFERÊNCIAS:


SPENGLER, Oswald. A Decadência do Ocidente. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1973.

FEYE, GUILLAUME. El Arqueofuturismo.

http://www.crisolyaccion.com/15-09-2015/el-arqueofuturismo-2/  

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A Superação do Eros Hedonístico em Direção a uma Metafísica do Sexo

Por: Gustavo Aguiar


O advento do século XIX trouxe consigo uma erupção vulcânica de clamores ávidos pelo desmantelamento de instituições tradicionais, que, tendo expulsado os últimos resquícios de sacralidade e indecomponibilidade (dantes pré-requisitos de constituição do vínculo matrimonial), sobejaram acroamaticamente desnaturadas. A família, outrora concebida como a célula mater de uma comunidade tipicamente pré-contratual, foi, de longe, a estrutura mais afetada pela imposição do dogma positivista e seus consectários materialistas, ao ponto de podermos, com o escólio de Zygmunt Bauman, inferir a obstetrícia de um amor líquido, caracterizado pela flexibilidade ou mobilidade dos padrões de sociabilidade e interação:

“Com a nova fragilidade das estruturas familiares, com a expectativa de vida de muitas famílias sendo mais curta do que a de seus membros, com a participação em determinada linhagem familiar tornando-se rapidamente um dos elementos “indetermináveis” da líquida era moderna e com a adesão a uma das diversas redes de parentesco disponíveis transformando-se, para um crescente número de indivíduos, numa questão de escolha – e uma escolha, até segunda ordem ,revogável -, um filho pode ser ainda “uma ponte” para algo mais duradouro. Mas a margem a que essa ponte conduz está coberta por uma neblina , ninguém sabe ao certo que tipo de margem iria se revelar, nem se da névoa emergiria uma terra suficientemente firme para sustentar um lar permanente. Pontes que levam a lugar nenhum, ou a nenhum lugar em particular: quem precisa delas? Para quê? Quem perderia seu tempo e seu bom dinheiro para planejá-las e construí-las?” (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos, p. 28)

Uma das consequências mais desagregadoras da banalização do liame familial para o esteio de uma sociedade ancorada em critérios rígidos de tradição e ancestralidade é a insuficiência axiológica inerente a um eros estritamente passional, volátil e efêmero, que se notabiliza pela imediatividade da satisfação das necessidades libidinais. “Democatiza-se”, por assim dizer, o impulso hedonístico de cariz utilitário, e o sexo torna-se uma ferramenta a disposição de espíritos inferiores, diversamente do que se passava nas sociedades aristocráticas, onde podemos abstrair, no tocante à prática sexual, todo um cerimonial de comunhão com o sagrado. Não são raros os exemplos de rituais de magia sexual oriundos dos mais diversificados segmentos da linhagem esotérica.

Contudo, no horizonte instável deste Admirável Mundo Novo, a sexologia, reivindicando para si o estatuto da mais insípida cientificidade, se limita a fornecer explicações gerais de natureza bio-psicológica acerca dos benefícios de uma vida sexualmente ativa, sem atentar para os pormenores metafísicos que tornam essa prática verdadeiramente transcentente sob vários aspectos, razão pela qual o sucesso de teorias pseudo-científicas como a psicanálise freudiana ganham cada vez mais espaço nos círculos intelectuais de inclinação burguesa e demo-liberal. Nesse sentido, Patrick Valas aduz que “os sexólogos tiraram da filosofia o termo “libido” (traduzido como apetite, desejo, aspiração, volúpia). Qualificando-o como libido sexualis, eles superpõem esse termo ao de “instinto sexual”.  Por sua vez, Freud tira esse termo dos sexólogos para dar-lhe uma nova definição. É difícil encontrar em sua obra um sentido unívoco para a libido, através das diferentes etapas das suas elaborações, mas ele sempre faz dela um componente essencial da sexualidade”. (VALAS, Patrick. As Dimensões do Gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo, p. 10)

Ainda a propósito da sexologia, Julius Evola assevera que “o enquadramento da sexologia ressente-se, num período mais recente e até nos atuais tratados com pretensões «científicas», da herança do materialismo do século XIX, que teve por premissas o darwinismo e o biologismo, ou seja, uma imagem completamente deformada e mutilada do homem. Do mesmo modo que, segundo estas teorias, o homem teria derivado do animal por «evolução natural», também a sua vida sexual e erótica era exposta em termos de um prolongamento dos instintos animais, e explicada, no seu fundo último e positivo, pelas finalidades puramente biológicas da espécie. Assim, afirmou-se também neste domínio a tendência moderna de reduzir o superior ao inferior, de explicar o superior pelo inferior — no caso presente, o humano pelo fisiológico e animal” (EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo, p. 14).

O perigo da redução do eros a uma dimensão puramente hedonística induz ao equívoco de termos que, forçosamente, considerá-lo o centro magnético das relações sexuais, como se valesse por si e em si mesmo, independente de um fator extrínseco  que o legitimasse no espaço e no tempo. Em Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, Arthur Schopenhauer designa a prole de um casal sob o epíteto de “gênio da espécie”. Para ele, o elo de afetividade que liga um parceiro ao outro durante o coito é insuficiente para justificar a estabilidade de uma relação sexual, sendo, portando, um aspecto contingente de sua constituição fisiológica. 

O fundamento último do intercurso sexual é, em Schopenhauer, o impulso de procriação. O gozo, ao revés, não passa de “uma ilusão voluptuosa (...) que mistifica o varão, fazendo-o crer que encontrará nos braços de uma mulher, cuja beleza lhe agrada, um gozo maior do que nos braços de uma outra qualquer; ou, que direcionada exclusivamente para um único indivíduo, convence-o com firmeza que a sua posse lhe daria uma felicidade extrema. Em conseqüência, presume empregar esforço e sacrifício em favor do próprio gozo, enquanto isso acontece apenas para a conservação do tipo regular da espécie, ou em favor de uma individualidade bem determinada que deve chegar à existência, e que só pode provir de tais pais”. (SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, p. 19)

Nesse contexto, a influência do darwinismo no pensamento de Schopenhauer reveste-se de clareza meridiana, sobretudo se considerarmos que, tendo em vista a parturição de uma prole fenotipicamente idealizada, o varão buscaria sempre se relacionar sexualmente com uma parceira detentora de “ingredientes” biológicos dos quais ele, enquanto indivíduo, prescinde para a “neutralização mútua de duas individualidades que está em pauta [e] exige-se que o grau determinado de masculinidade do homem corresponda exatamente ao grau determinado de feminilidade da mulher, suprimindo-se com isso aquelas unilateralidades de modo preciso. Assim, o homem mais masculino procurará a mulher mais feminina e vice versa, e justamente desse modo cada indivíduo procurará quem lhe corresponda no grau de sexualidade”. (SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, pgs. 29 e 30)

O substrato darwinista reside na lei de sobrevivência do mais forte, que ,transplantada para o terreno do eros passional, significa que os mais belos devem ter primazia na seleção para a prática do coito, posto ser a beleza o único traço imediatamente perceptível em um ambiente de disputa pelo protagonismo da reprodução da espécie. Sobreleva destacar a primazia da beleza somática em detrimento até mesmo das virtudes contemplativas (v.g. o intelecto), um dos pontos-chave para a compreensão do amor passional sob a perspectiva schopenhaueriana. 

Entretanto, por mais sedutora que se nos afigure a proposta de Schopenhauer sobre um potencial “Gênio das espécies”, ela, ainda assim, peca por não conseguir explicar o fato de existirem, em nosso meio, tantos seres imperfeitos a despeito do homem, em seu rastreamento inconsciente por um ideal de perfectibilidade cada vez mais acentuado, almejar parceiros que lhe correspondam biologicamente. Se, por um lado, é compreensível que o filósofo frankfurtiano tenha elegido as gerações vindouras como fonte de legitimidade do ato sexual (afinal, tal concepção, se rigorosamente analisada, nos reconduzirá aos princípios da potência e do ato, balizadores da metafísica aristotélica, também presentes, ainda que sob outra nomenclatura, na ontologia heideggeriana), por outro, essas coordenadas soam demasiadamente perfunctórias sob um ponto de vista esotérico, habituado a julgar as coisas a partir de uma posição superior.
                                                                         
Nas palavras sempre lúcidas de Julius Evola, “poderemos, ainda, citar numerosos casos em que uma atração intensa, mesmo «fatal», se gerou entre seres que de forma alguma representam um optimum para fins de procriação conformes à espécie; por isso, o impulso schopenhauriano, mesmo relegado para o inconsciente, surge-nos relativa ou totalmente inexistente. Trata-se, pois, de algo diferente: com base na teoria finalística mencionada, deveria em rigor encontrar-se uma sexualidade reduzida nos exemplares menos nobres da espécie humana, e no entanto é neles que, embora sob formas primitivas, ela é maior, sendo tais exemplares os mais fecundos. Poderia, de fato, dizer-se que o «gênio da espécie», com as suas manhas ocultas e as suas armadilhas, é bastante inábil e precisa muito de se aperfeiçoar, ao considerarmos que através do amor físico o mundo está povoado essencialmente de subprodutos da espécie humana”. (EVOLA, Julius, Metafísica do Sexo, p. 23)

Em outras palavras: a assunção da influência abstrata de um gênio da espécie sobre todo o processo de seleção natural através da prática do coito carece de verificação empírica, visto que, pela experiência crua, as estirpes inferiores são as que mais indiscriminadamente se relacionam entre si, ao ponto de, no marco de uma hodiernidade cada vez mais decadente e esclerótica, ser possível falar numa espécie de “monopolização” libidinal dos meios de somatização do prazer vertido em gozo puro e simples. Isso explica como práticas outrora condenáveis como o incesto, a pederastia e a promiscuidade se tornaram, em nossos dias, amplamente difundidas e até mesmo incentivadas por novelas, telejornais e outros setores estratégicos da mass media. “Ao desviar o exame do domínio dos dados da consciência para o âmbito da experiência, uma observação assaz banal dir-nos-á que no domínio do sexo se produz qualquer coisa de parecido com o que se passa no domínio alimentar. Um homem que não seja primitivo não escolhe ou prefere simplesmente os alimentos que o organismo pode considerar como os que melhor lhe convêm, isto sucede não porque o homem seja «depravado» mas simplesmente porque é homem”. (EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo, p. 22)

A todas as considerações até aqui expendidas, soma-se a dinâmica de funcionamento do mercado global em uma sociedade capitalista e obteremos, como resultado, a degeneração do eros contemplativo de procedência helênica em um eros passional (do grego pathos, que significa doença), incapaz de dialogar com instâncias exteriores ao estágio avançado de seu definhamento vegetativo. É de rematada estupidez (pra não dizer de uma violação frontal ao bom senso) insistir na tese de que a crença cega no progresso repercutiu única e exclusivamente nas searas em que a tecnologia de produção e reprodução das técnicas de industrialização estiveram presentes. A sociedade industrial colonizou não só os meios e formas de vida, mas também aqueles aspectos mais íntimos da existência humana, dentre eles, a sexualidade.

De todo o acima exposto, pode-se fazer intervir, a título de curiosidade, elucidações  pertinentes ao universal simbólico do sexo, em consonância com doutrinas das religiões extremo-orientais, reflexões que escapam aos limites positivistas de uma análise rigorosamente causal-naturalista. Nesse sentido, a preocupação central das mencionadas correntes metafísicas volta-se para o reconhecimento da unidade estática por trás de uma ordem de multiplicidades dinâmicas que desfilam perante a intuição sensorial. Este é o denominador comum em todas as crenças do Extremo Oriente, consoante se extrai da seguinte passagem: “Não existe doutrina metafísica e tradicional completa, que tenha considerado a Díade como supremo ponto de referência da sua visão do mundo. A tradição do Extremo Oriente conhece, como já assinalamos, para além do yin e do yang, a <<Grande Unidade>>  - Tai-i ou Tai-ki. Plotino fala do Um superior e anterior à dualidade divina de novo e vÂn, de ser e da potência-vida. O tantrismo conhece o Nirgûna-Brahman ou um outro princípio equivalente para além da díade Çiva-Çâkti, etc. Este ponto de referência superior impede que se reconheça uma dignidade igual aos dois princípios. O princípio masculino, o yang, Çiva ou o ser como elemento da díade, reflete o Um, o ser transcendente; representa e incorpora este Um no processo da manifestação universal, na relatividade, na corrente das formas (em Plotino, na qualidade de Logos). Quanto à «natureza», podemos dizer em termos teológicos que não constitui um princípio que seja coexistente com Deus, mas que deriva de Deus e tem, portanto, uma «realidade secundária»”. (EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo, p. 156)


O Uno, princípio estático da virilidade urânico-solar se sobressai ao múltiplo como representação lunar de uma feminilidade dinâmica e fragmentária, principalmente em sociedades de índole patriarcal, em que o sentido de coerência da práxis sexual decorre da suprema síntese orgânica de elementares heterogêneos. Somente a partir destes pressupostos é que podemos deduzir a existência de uma harmonia entre ambos os extremos, que atinge seu apogeu no instante do gozo. Portanto, o gozo não seria nem uma ilusão provocada pelo gênio das espécies, conforme assinala Schopenhauer, nem uma sensação puramente biológica através da qual dois sujeitos compartilham um prazer essencialmente hedônico e utilitarista, mas algo mais elevado na hierarquia espiritual: o momentum de externalização da comunhão com o sagrado em sua etérea unidade. 


REFERÊNCIAS: 


BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2004.

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte. Martins Fontes: São Paulo, 2000.

VALAS, Patrick. As Dimensões do Gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2001.

EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo. Edições Afrodite: Lisboa, 1976.