por: Gustavo Aguiar
Stanley Kubrick pertence àquela classe sui de cineastas aclamados
pela crítica em razão de diversos fatores; da versatilidade associada à
conjugação de elementos plúrimos (verbais, simbólicos, visuais, acústicos, etc)
em tomadas excessivamente longas para os padrões hollywoodianos ao manejo da habilidade
pouco ortodoxa de mergulhar o espectador em uma espécie de transe hipnótico, o
que requer a posse de um conhecimento aguçado em matéria de neurolinguística e
comunicação subliminar.
Mas o cinema de Kubrick se notabiliza, sobremaneira, pelo
domínio irretocável de uma técnica pouquíssimo explorada pelos grandes luminares
da cinematografia mundial: a sobreposição de camadas, cujo exemplo mais expressivo
na filmografia kubrickiana recai sobre O Iluminado, película adaptada do horror
ficcional homônimo de Stephen King.
O Documentário “O Labirinto de Kubrick” (título original: Room
237) percorre a trama d’O Iluminado com o condão de oferecer a análise
topográfica de um vasto apanhado de cenas – nem sempre emblemáticas, sublinhe-se
– que sugerem que Kubrick não só era mestre em encaixar histórias paralelas
dentro da estrutura do pano de fundo do enredo original, como também em fazer
com que esses “sub-contextos” estrategicamente difundidos nos lugares mais
improváveis de cada tomada se comuniquem entre si, formando um composto orgânico
de partículas geometricamente aglutinadas, similar à imagem de um
quebra-cabeças. Nesse mister, Kubrick se revelara, muito mais do que um reles
cineasta, um mago da comunicação audiovisual.
O entrelaçamento da arte vitoriana e das sinfonias de Mozart
e Bethoven com o figurino retro-cyberpunk
típico de cenários pós-apocalípticos concorre, outrossim, para a modulação
da estética de Laranja Mecânia e 2001: Odisseia no Espaço, mas, distintamente
destes últimos, O Iluminado desafia os limites da percepção sensorial por
conseguir ser infinitamente mais complexo do que aparenta prima facie, sem precisar, para tanto ,recorrer ao imaginário
freudiano de Laranja Mecânica (muito menos evidente na obra de Anthony Burguess,
diga-se de passagem) ou ao psicodelismo extremado de 2001.
A intensificação progressiva do clima de esquizofrenia
paranoide d’O Iluminado é algo sem precedentes que, por isso mesmo, não pode
ser experimentado nem sequer remotamente nas páginas do original de Stephen
King. Inclusive, indícios apontados pelo documentário nos garantem que King
quase “enlouqueceu” ao se aventurar no desvelamento do multiverso das
incontáveis subcamadas do filme de Kubrick, até perceber que O Iluminado versava,
dentre outros assuntos destituídos de conexão imediata, sobre a chacina dos nativos
norte-americanos perpetrada pelos colonos durante a guerra civil e sobre a
controvertida viagem do homem à lua patrocinada pelo programa Apolo 12 da NASA,
para o qual Kubrick havia supostamente trabalhado.
Nesse sentido, O Iluminado assemelha-se a um edifício
monstruoso construído em cima de um terreno movediço, tamanha a dificuldade de,
sob a perspectiva do observador externo, enxergar todos os seus andares como a
imagem congelada no fundo de um estereoscópio monocular, posto que o térreo
seria “engolido” antes disso, cedendo lugar a uma sucessão ininterrupta de
novos e mais elaborados térreos; isso tudo por uma razão muito simples: o formato
“padrão” de armazenamento da mídia eletrônica impossibilita que o espectador apreenda
de maneira simultânea a interação de todos os detalhes meticulosamente espalhados
em cada ângulo de cada cena. E esse limite, nem mesmo a genialidade de Kubrick foi
capaz de superar.
A seu modo, Kubrick foi um xamã submetido a diversas limitações
materiais na transmissão da sua experiência singular ao grande público, alguém
que, mesmo tentando “se comunicar na língua dos homens”, acabou se tornando
grande demais para sua própria época. Não obstante, nem tudo foram rosas em sua
trajetória. Impende acrescentar que ele nunca perdeu a oportunidade de se valer
de seu inquestionável talento para veicular propaganda pacifista, vide Doutor
Fantástico e Nascido Para Matar, ambos recheados com a mesma baboseira insossa que encheu os cofres de Hollywood no auge do Woodstock. Não foram poucos os
diretores renomados que se aproveitaram deste período para vociferarem contra os
“horrores da guerra”, mas Kubrick, em especial, perdeu a chance de se abster de
engrossar o coro.
Talvez O Iluminado encante justo por não
adentrar o mérito de questões políticas, permanecendo irradiante de uma beleza
ao mesmo tempo nebulosa e escancarada. Kubrick basicamente logrou transformar a
história de uma família comum cujo patriarca arranja um emprego de zelador de
um hotel e acaba sendo “possuído” pelos espíritos que nele habitavam desde períodos
imemoriais em uma compilação faraônica de eventos históricos e informações
autobiográficas capazes de, por si sós, provocarem um nó na cabeça do
espectador.
Talvez as possibilidades de obtermos um panorama completo do
labirinto de Kubrick tenha morrido com o próprio Kubrick, mas as pistas que ele
deixou para trás nos exortam continuamente a relermos a História sob uma
perspectiva diferenciada da que costumamos adotar.