sábado, 26 de março de 2016

Kubrick e o Labirinto

por: Gustavo Aguiar

Stanley Kubrick pertence àquela classe sui de cineastas aclamados pela crítica em razão de diversos fatores; da versatilidade associada à conjugação de elementos plúrimos (verbais, simbólicos, visuais, acústicos, etc) em tomadas excessivamente longas para os padrões hollywoodianos ao manejo da habilidade pouco ortodoxa de mergulhar o espectador em uma espécie de transe hipnótico, o que requer a posse de um conhecimento aguçado em matéria de neurolinguística e comunicação subliminar.

Mas o cinema de Kubrick se notabiliza, sobremaneira, pelo domínio irretocável de uma técnica pouquíssimo explorada pelos grandes luminares da cinematografia mundial: a sobreposição de camadas, cujo exemplo mais expressivo na filmografia kubrickiana recai sobre O Iluminado, película adaptada do horror ficcional homônimo de Stephen King.

O Documentário “O Labirinto de Kubrick” (título original: Room 237) percorre a trama d’O Iluminado com o condão de oferecer a análise topográfica de um vasto apanhado de cenas – nem sempre emblemáticas, sublinhe-se – que sugerem que Kubrick não só era mestre em encaixar histórias paralelas dentro da estrutura do pano de fundo do enredo original, como também em fazer com que esses “sub-contextos” estrategicamente difundidos nos lugares mais improváveis de cada tomada se comuniquem entre si, formando um composto orgânico de partículas geometricamente aglutinadas, similar à imagem de um quebra-cabeças. Nesse mister, Kubrick se revelara, muito mais do que um reles cineasta, um mago da comunicação audiovisual.

O entrelaçamento da arte vitoriana e das sinfonias de Mozart e Bethoven com o figurino retro-cyberpunk típico de cenários pós-apocalípticos concorre, outrossim, para a modulação da estética de Laranja Mecânia e 2001: Odisseia no Espaço, mas, distintamente destes últimos, O Iluminado desafia os limites da percepção sensorial por conseguir ser infinitamente mais complexo do que aparenta prima facie, sem precisar, para tanto ,recorrer ao imaginário freudiano de Laranja Mecânica (muito menos evidente na obra de Anthony Burguess, diga-se de passagem) ou ao psicodelismo extremado de 2001.   

A intensificação progressiva do clima de esquizofrenia paranoide d’O Iluminado é algo sem precedentes que, por isso mesmo, não pode ser experimentado nem sequer remotamente nas páginas do original de Stephen King. Inclusive, indícios apontados pelo documentário nos garantem que King quase “enlouqueceu” ao se aventurar no desvelamento do multiverso das incontáveis subcamadas do filme de Kubrick, até perceber que O Iluminado versava, dentre outros assuntos destituídos de conexão imediata, sobre a chacina dos nativos norte-americanos perpetrada pelos colonos durante a guerra civil e sobre a controvertida viagem do homem à lua patrocinada pelo programa Apolo 12 da NASA, para o qual Kubrick havia supostamente trabalhado.  

Nesse sentido, O Iluminado assemelha-se a um edifício monstruoso construído em cima de um terreno movediço, tamanha a dificuldade de, sob a perspectiva do observador externo, enxergar todos os seus andares como a imagem congelada no fundo de um estereoscópio monocular, posto que o térreo seria “engolido” antes disso, cedendo lugar a uma sucessão ininterrupta de novos e mais elaborados térreos; isso tudo por uma razão muito simples: o formato “padrão” de armazenamento da mídia eletrônica impossibilita que o espectador apreenda de maneira simultânea a interação de todos os detalhes meticulosamente espalhados em cada ângulo de cada cena. E esse limite, nem mesmo a genialidade de Kubrick foi capaz de superar.     

A seu modo, Kubrick foi um xamã submetido a diversas limitações materiais na transmissão da sua experiência singular ao grande público, alguém que, mesmo tentando “se comunicar na língua dos homens”, acabou se tornando grande demais para sua própria época. Não obstante, nem tudo foram rosas em sua trajetória. Impende acrescentar que ele nunca perdeu a oportunidade de se valer de seu inquestionável talento para veicular propaganda pacifista, vide Doutor Fantástico e Nascido Para Matar, ambos recheados com a mesma baboseira insossa que encheu os cofres de Hollywood no auge do Woodstock. Não foram poucos os diretores renomados que se aproveitaram deste período para vociferarem contra os “horrores da guerra”, mas Kubrick, em especial, perdeu a chance de se abster de engrossar o coro.

Talvez O Iluminado encante justo por não adentrar o mérito de questões políticas, permanecendo irradiante de uma beleza ao mesmo tempo nebulosa e escancarada. Kubrick basicamente logrou transformar a história de uma família comum cujo patriarca arranja um emprego de zelador de um hotel e acaba sendo “possuído” pelos espíritos que nele habitavam desde períodos imemoriais em uma compilação faraônica de eventos históricos e informações autobiográficas capazes de, por si sós, provocarem um nó na cabeça do espectador. 

Talvez as possibilidades de obtermos um panorama completo do labirinto de Kubrick tenha morrido com o próprio Kubrick, mas as pistas que ele deixou para trás nos exortam continuamente a relermos a História sob uma perspectiva diferenciada da que costumamos adotar. 

sábado, 19 de março de 2016

Breves Considerações Acerca da Soberania Nuclear

por: Gustavo Aguiar


“Quando se constrói a bomba atômica o que se está dizendo é: eu sou adulto, eu deixei de ser criança!” 

– Enéas Carneiro


A soberania nuclear é, de longe, uma das questões mais anatematizadas pelos veículos de comunicação de massa. A simples menção ao assunto tem sido suficiente para provocar náuseas em uma quantidade astronômica de brasileiros, que acredita piamente que propugnar pela prerrogativa de um país terceiro-mundista como Brasil fabricar bombas atômicas constitui violação frontal aos direitos humanos na comunidade internacional. Pois saiba, prezado leitor, que isso é exatamente o que os engenheiros sociais por trás da Organização das Nações Unidas e de Estados-títere por ela instrumentalizados querem que você acredite.

Malgrado a História nunca ter sido uma disciplina muito popular entre os nossos compatriotas, é de bom alvitre recordar o período obscuro da Guerra Fria, quando o mundo esteve a um passo de voar pelos ares feito uma tampa de chaleira em ebulição durante o chá da tarde.

De um lado, os Estados Unidos, detentores do monopólio da energia atômica desde Hiroshima e Nagasaki, conspiram para transformar Cuba em seu mais novo quintal. Doutro, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas efetivam a instalação de ogivas nucleares na ilha caribenha.

O clima de tensão bipolar evoluiu ao ponto de desencadear o que militares norte-americanos denominaram mutual assured destruction (acrônimo MAD), consistente na estratégia da intimidação: um dos pólos, munido até os dentes com o mais sofisticado arsenal de destruição em massa procura, através da propaganda militar, acuar o adversário na expectativa de que este último recolhesse suas coisas e fosse embora, sem deixar vestígios. Pronto! O holocausto nuclear já não era motivo de preocupação para autoridades diplomáticas, e, ao menos provisoriamente, o mundo podia dormir sossegado.

O problema é que o outro lado também começa a investir maciçamente em intimidação, e as prospectivas da corrida armamentista voltam a se tornar ameaçadoras.

Poder-se-ia contra-argumentar, diante disso, que a Guerra Fria é a prova cabal de que nenhuma potência do globo deveria, em quaisquer circunstâncias, titularizar o direito de construir suas próprias tecnologias de aniquilação. Mas isso não só é irreal, como contribui para o engessamento do debate acerca do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), criminosamente ratificado pelo Brasil em 1998, durante a gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.  

Podemos extrair de tal panorama um sem número de consequências negativas que impactaram drasticamente o potencial de autodeterminação soberana do Estado brasileiro em face dos interesses geopolíticos do globalismo unipolar. A primeira é intuitiva, mas não menos importante: o território brasileiro, assim como Cuba, corre sérios riscos de ser disputado em uma eventual bipolarização do espectro ideológico, haja vista que a experiência nunca falhou em demonstrar que os únicos países verdadeiramente respeitados por hiperpotências imperialistas são aqueles que, como o Irã de Ahmadinejad, não hesitam em turbinar suas usinas de enriquecimento de urânio, usinas estas que os EUA procuraram reiteradamente sabotar por meio de supercomputadores quânticos projetados especificamente para esta finalidade.

Mais perigosas do que a bomba atômica são armas cuja existência a massa ignara, em seu estado de catatonia induzida, não imagina sequer remotamente.

Se tem uma coisa que os estrategistas norte-americanos aprenderam com a Guerra Fria foi que desarmar adversários em potencial é uma maneira bastante promissora de eliminar o “segundo estágio” do MAD (aquele em que o inimigo, provocado, se vê tentado a revidar, aumentando significativamente a probabilidade de uma destruição em larga escala). Observe que não estamos nos referindo a algo que pode vir a acontecer em um futuro hipotético, mas a uma coisa que já acontece em níveis inimaginavelmente superiores ao que estamos habituados a processar.

O povo brasileiro está tão à mercê de incursões imperialistas quanto a Palestina das bombas de fósforo branco israelenses.  Possuir o direito de fabricarmos nossa própria tecnologia nuclear não é, absolutamente, um privilégio, mas uma necessidade premente que já deveria ter sido sanada há muito tempo, como sugeriu, outrora, o injustamente vilipendiado Enéas Carneiro - que Deus o tenha.

Fato é que tanto Fernando Henrique quanto Luís Inácio Lula da Silva se provaram incompetentes no trato com a soberania nacional, especificamente no tocante à questão nuclear: o primeiro por ter municiado a fragilização do Estado brasileiro ao assinar o Tratado de Não-Proliferação, desarmando seu próprio povo;  o segundo por sugerir ingenuamente em 2009 o desmantelamento dos arsenais nucleares de todos os países do globo, estribado na frágil premissa  de que isso não se coaduna com os princípios “democráticos”.

As frequentes tentativas por parte dos EUA no sentido de atrasar o desenvolvimento do programa nuclear norte-coreano patenteiam o receio de Washington em permitir que um inimigo a altura da extinta URSS coloque entraves à hegemonia por ele capitaneada. Basicamente, a bomba atômica é, hoje, um dos poucos elementos hábeis a restituir autonomia a países dessoberanizados. Se a República Popular Democrática da Coreia do Norte ainda não foi alvo de uma guerra parecida com a do Vietnã, isso se deve inteiramente à atitude patriótica de não abrirem mão da defesa nacional.

A pretensa instauração de um controle dos programas nucleares de nações soberanamente instituídas, supostamente vocacionada para a “pacificação” dos meios de produção de energia nuclear suscita uma questão crucial, que pode ser resumida na seguinte parêmia: quis custodiet ipsos custodes? (quem vigia os vigilantes?) Ora, se há controle, há um painel, e se há um painel, há um operador. A que interesses serve o operador do painel de controle da Organização das Nações Unidas?

Acreditamos ter respondido a esta pergunta.